Foram as toneladas de crude que se derramaram no mar que fizeram surgir a lógica do princípio da precaução no
Direito Germânico nos anos 70, o princípio depois espalhou-se, e depressa, pelo
Direito Internacional.1
Mas porque terá sido necessária a verificação de danos ambientais tão devastadores para que se equacionasse o princípio em questão? MARIA DA GLÓRIA GARCIA afirma
que “a análise previsional tem sido pouco desenvolvida pelo homem ao longo do
seu percurso histórico, diferentemente do que acontece com a análise dos
fenómenos do passado, que desde sempre tem feito, e com a construção de
experiências deles resultantes. É por isso que a parte do cérebro que lida com
os acontecimentos passados (...) está muito desenvolvida, ao passo que a parte
do cérebro que lida com o futuro e as prognoses do agir humano está atrofiada,
pouco desenvolvida”.2 Pode bem ser esta a explicação.
Este princípio tão
“doutrinalmente polémico a nível nacional”3 ganhou a sua
popularidade no plano Internacional desde
a Declaração do Rio em 1992, e actualmente no Direito Europeu é um princípio
com muita força e que consta de inúmeros documentos legais, sendo também citado
na jurisprudência dos tribunais Europeus. Nos Estados Unidos por sua vez não
tem tido tão caloroso acolhimento, CASS SUNSTEIN resume-o a um “Better safe
than sorry”4 afirmando que este se trata de um princípio do medo.
A nível nacional as opiniões da
doutrina divergem. Autores como ALEXANDRA ARAGÃO e J.J. GOMES CANOTILHO
defendem a autonomização do princípio face ao da prevenção, na medida em que o
princípio da prevenção se reconduz aos perigos e o princípio da precaução aos
riscos. O princípio da precaução é descrito ainda como um «in dubio pro ambiente»5,
transferindo-se o ónus da prova para os potênciais agressores. Este in dubio aplica-se às situações de incerteza
científica relativas a novas realidades como no caso dos Organismos
Genéticamente Modificados ou no caso Pfizer6,
aplica-se também quando já exista um dano mas seja desconhecida a sua causa, servem
de exemplo as vacas loucas7 e ainda nas hipóteses de díficil
verificação do nexo de causalidade entre o dano e a sua causa (situações de causalidade cumulativa por exemplo).
CARLA AMADO GOMES por sua vez,
não vê a precaução como um verdadeiro princípio afirmando que «a ‘precaução’ —
que mais não é do que uma prevenção antecipada a riscos — só ganha autonomia
enquanto critério material de revisão de um acto em que a dúvida da lesividade
(ou da sua causa) persiste, apesar das provas apresentadas por ambas as partes.»8
O Professor VASCO PEREIRA DA
SILVA também questiona a autonomização do princípio da precaução9
enquanto princípio do Direito do Ambiente, neste sentido aponta três críticas: 1) de ordem linguística10; 2) de
determinação conteúdo material princípio; 3) de técnica jurídica. A primeira crítica
faz todo o sentido. A segunda crítica, quanto ao conteúdo incerto do princípio,
(que tanto pode consistir numa “sensata exigência de ponderação jurídica
consideradora da dimensão ambiental dos fenómenos” até um eco-fundamentalismo
capaz de afastar qualquer nova realidade) parece levantar algumas dúvidas.
Os critérios de autonomização do
princípio relativos aos seus limites e alcance encontram-se esclarecidos pelo
Direito Europeu, quer pela jurisprudência, quer pelas Instituições Comunitárias.11
Relativamente ao risco, é verdade
que “risco zero” em matéria de ambiente não existe. Vivemos numa sociedade de
risco, e, infelizmente, quanto maiores os interesses em jogo, maiores os riscos
que estamos dispostos a correr. Quando há a materialização destes riscos
indesejados ninguém se quer responsabilizar pois no fundo é a nossa própria
dependência a culpada destes desastres e por este motivo somos todos
responsáveis. Mas se somos todos responsáveis no geral então ninguém o é em
particular!12 O paradigma em que vivemos acaba por ser muitas vezes o
do Homem vs. Natureza (não como no programa do Bear Grylls...!), e este é um problema grave pois não queremos chegar ao extremo daquele provérbio que afirma que "Só quando a última árvore for derrubada, o último peixe for morto e o último rio for poluído é que o homem perceberá que não pode comer dinheiro."
O princípio da precaução à luz
das políticas Europeias dificilmente tem por objectivo chegar ao “risco zero”, pretende
apenas elevar o grau de protecção articulando o desenvolvimento com o princípio
da sustentabilidade.13
E se, porventura, os eco-fundamentalistas
forem aqueles que pretendem a mudança do paradigma da nossa actual sociedade de
consumo e que questionam a sustentabilidade da mesma, acho que me insiro no
grupo.
O Professor conclui que a autonomização do princípio da precaução pode levar à inibição do surgimento de novas realidades, ou seja, poder-se-à estar a pôr um travão ao progresso por se impor uma carga excessiva ao exigir a não lesão ambiental. Esta crítica não procede porque este não é o único efeito que resulta da autonomização do princípio. O que acontece é que podemos também assistir a uma evolução da ideia de progresso. Só será verdadeiro progresso aquele que estiver de mão dada com o ambiente. Este princípio no fundo transfere para o Direito que o mínimo ético deve ser o da preocupação geral ambiental e daí decorre que as novas realidades devem ser auto-sustentadas, para JELLINEK o Direito não é nada além do mínimo ético.
E no fundo este não é princípio
de paralisação, mas o contrário, trata-se de um princípio de acção! Em vez de se
procurar a abstenção da acção nos casos de dúvida, o que este princípio pretende
é que se ponha em prática o que permite melhor agir,14 ou seja, deve-se
investir nas alternativas mais eco-friendly! Este princípio também dinamiza acção ao
promover um maior conhecimento científico das actividades que se pretende
desenvolver.
Relativamente à terceira crítica
relativa à técnica jurídica, não vejo como é possível não haver uma solução no
ordenamento português harmonizada com o Direito da União, pois esta desconformidade
pode resultar em condenações do Estado por parte dos Tribunais da União
Europeia.15
Concluindo, este princípio ao
mesmo tempo que impõe grandes desafios na sua aplicação e que suscita dúvidas
muito prementes na doutrina, obriga também a repensar a actual gestão de
riscos, a almejar por um desenvolvimento sustentável, e ainda a salvaguardar a
justiça intergeracional em matéria de ambiente. O princípio da precaução não só
é útil per si como indispensável ao
correcto desenvolvimento da sociedade no longo prazo.
_______________________________________________________________________
1 Cfr.
GOMES, Carla Amado, Das providências cautelares eo “princípio da precaução” in Estudos em Homenagem ao Centenário do
Professor Doutor Paulo Cunha, Coimbra, Almedina, 2012 pp. 229-233.
2
Cfr. GARCIA, Maria da Glória, Princípio da Precaução: lei do medo ou razão da
esperança? in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim Gomes
Canotilho, I, Coimbra, Coimbra Editora, 2012, p. 325
3
Cfr. ARAGÃO, Alexandra, Aplicação Nacional do Princípio da Precaução, in
Colóquios 2011-2012 (Associação dos Magistrados da Jurisdição Administrativa e
Fiscal Portuguesa), 2013, p. 160
4 Cfr. SUSTEIN, Cass, Beyond the Precautionary
Principle, Public Law and Legal Theory Working Paper no. 38, 2003 p.2;
5 Cfr.
CANOTILHO, J. J. Gomes (coord.), Introdução ao Direito do Ambiente, Lisboa,
Universidade Aberta, 1998, pp. 48-50;
6
No caso Pfizer discutiu-se a validade de um regulamento comunitário que vedava a comercialização de um
antibiótico (a verginiamicina utilizada como aditivo nos alimentos para animais)
revogando as autorizações que a Empresa até então detinha. A Pfizer apresentou
um pedido de suspensão total ou parcial da eficácia do regulamento ao qual o TPI
recusou dar provimento. O TJCE confirmou o indeferimento afirmando que “a
autoridade pública competente deve velar
por que as medidas que toma, mesmo que se trate de medidas preventivas, sejam
baseadas numa avaliação científica dos riscos tão exaustiva quanto possível,
tendo em conta as circunstâncias do caso concreto" (considerando 162). Acórdão do TPI de 30 de Junho de 1999, Proc.
T-13/99 R, e Acórdão do TJCE de 18 de Novembro de 1999, Proc. C-329/99 P(R).
7 No
caso da "doença das vacas loucas",o Reino Unido pediu a anulação de
uma Decisão da Comissão relativa a determinadas medidas de emergência em
matéria de protecção contra a encefalopatia espongiforme dos bovinos. As
medidas proibiam a exportação da carne
de bovino inglesa e seus derivados apesar
do Reino Unido ter previamente adoptado um conjunto de medidas de combate à
doença e a incidência da mesma ter começado a declinar a partir de 1993. Ainda
assim o Tribunal recusou o pedido com o intuito de prevenir quaisquer riscos
(mas sem menção ao princípio da precaução). Acórdão
de 12 de Julho de 1996, Caso C-180/96.
8
Cfr. GOMES, Carla Amado, op.cit. p.259.
9
Cfr. SILVA, Vasco Pereira da, Verde Cor de Direito, Lições de Direito do
Ambiente, Coimbra, Almedina, 2002, pp. 63-83;
10 No
sentido de prevenção e precaução serem sinónimos na língua portuguesa criando
situações de pouca clareza entre juristas e leigos. Na língua inglesa a
«prevention» e a «precaution» já transmitem ideias diferentes reportando-se a
segunda a um sentido de cautela. SILVA, Vasco Pereira da op. cit. p.68
11 Cfr.
ARAGÃO, Alexandra, op.cit. p.185
12 Cfr.TIMMERMANS, Lyana Francot-/VRIES, Ubaldus
de, Eyes Wide Shut: On Risk, Rule of Law and Precaution, in Ratio Juris, vol.
26, no. 2, June 2013, p. 283;
13
Cfr. ARAGÃO, Alexandra, Ibidem
14 Cfr.
MICHEL FRANC «Traitement Juridique du risque et principe de précaution», in
Actualité Juridique Droit Administratif n.8, 3 Mars, 2003, p.362 apud. ARAGÃO, Alexandra, Ibidem p.183
15O
Princípio da Precaução aplica-se
directamente no ordenamento jurídico interno enquanto princípio por força 1) dos
regulamentos europeus que o consagram, 2) dos deveres de transposição de
directivas europeias nos quais o princípio é essencial, e 3) como princípio
geral do Direito Europeu, consagrado pela primeira vez no Tratado de Maastricht,
artigo 130ºR. Cfr. ARAGÃO, Alexandra, Ibidem
pp.160-161
Notas Bibliográficas
ARAGÃO, Alexandra, Princípio da Precaução: manual de
instruções, in Revista do CEDOUA, ano 11, n.º 2 (2008), pp. 9-57;
ARAGÃO, Alexandra, Dimensões Europeias do Princípio da
Precaução, in RFDUP, ano 7, 2010, pp. 245-291;
ARAGÃO, Alexandra, Aplicação Nacional do Princípio da
Precaução, in Colóquios 2011-2012 (Associação dos Magistrados da Jurisdição
Administrativa e Fiscal Portuguesa), 2013, pp. 159-185;
CANOTILHO, J. J. Gomes (coord.), Introdução ao Direito do
Ambiente, Lisboa, Universidade Aberta, 1998, pp. 43-66;
GARCIA, Maria da Glória, Princípio da Precaução: lei do medo
ou razão da esperança? In: Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim
Gomes Canotilho, I, Coimbra, Coimbra Editora, 2012, pp. 315-330
GOMES, Carla Amado, Risco e Modificação do acto autorizativo
concretizador de deveres de protecção do Ambiente - Dissertação de doutoramento
em Ciências Jurídico-Políticas, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa,
Lisboa 2007.
SILVA, Vasco Pereira da, Verde Cor de Direito, Lições de
Direito do Ambiente, Coimbra, Almedina, 2002, pp. 63-83;
TELES, Miguel Galvão Constituições dos Estados e eficácia
interna do direito da união e das Comunidades Europeias : em particular sobre o
artigo 8º, nº 4, da Constituição Portuguesa
in: Estudos em homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano : no
centenário do seu nascimento, Vol. 2 pp. 295-331
Cláudia Alexandra Godinho Mager aluna n.º 18077
Sem comentários:
Enviar um comentário