12 de abril de 2014

Há DIA’s e DIA’s…

     A Declaração de Impacte Ambiental encontra-se integrada no procedimento administrativo especial mais relevante em matéria de Direito do Ambiente - a Avaliação de Impacte Ambiental, regulada actualmente pelo DL n.º 151-B/2013, de 31 de Outubro.
Esta Avaliação configura um instrumento de carácter preventivo da política do ambiente, e como refere Vasco Pereira Da Silva, consiste num meio jurídico ao serviço dos fins ambientais, e em particular do princípio da prevenção. A Avaliação de Impacte Ambiental, doravante designada AIA, baseia-se na realização de estudos e consultas, com efectiva participação pública e análise de possíveis alternativas, que tem por objecto a recolha de informação, identificação e previsão dos efeitos ambientais de determinados projectos, bem como a identificação e proposta de medidas que evitem, minimizem ou compensem esses efeitos, tendo em vista uma decisão sobre a viabilidade da execução de tais projectos e respectiva pós-avaliação (artigo 2.º, alínea d) do DL n.º 151-B/2013).
Ora, é sobre esta decisão de viabilidade da execução de projectos que caem no âmbito do procedimento de AIA que vai incidir o meu estudo. Assim, focarei o meu pensamento sob três pontos fulcrais: 1º Noção de Declaração de Impacte Ambiental e o seu contexto no procedimento de AIA; 2º Diversos conteúdos da Declaração de Impacte Ambiental e o problema sua força jurídica e da competência para a sua emissão; 3º Análise estatística do sentido das decisões nas Declarações de Impacte Ambiental em Portugal, desde o ano 2000 até à actualidade.
Tendo em conta que o procedimento de AIA tem como objectivo a análise de possíveis impactes ambientais, directos ou indirectos, mas com carácter significativo que decorram da execução dos projectos, cumpre haver uma decisão sobre a viabilidade ambiental dos mesmos. Esta decisão é fruto do confronto entre os benefícios económicos e os prejuízos ecológicos de um determinado projecto, para saber se o sacrifício inerente à execução deste contraria ou não a sustentabilidade ambiental.
A Declaração de Impacte Ambiental, doravante designada DIA, surge no momento final do procedimento de AIA. Fazendo uma breve sistematização de todo o procedimento, primeiramente o proponente dá o impulso procedimental no qual apresenta o Estudo de Impacte Ambiental (doravante EIA) à entidade licenciadora. Para analisar o EIA é nomeada pela Autoridade de AIA uma Comissão de Avaliação, composta por diversas entidades, que tem a incumbência de realizar apreciações técnicas específicas (cada entidade no âmbito da sua respectiva competência obviamente), e de emitir um parecer preliminar, no prazo de 20 dias a contar da recepção dos documentos enviados pela autoridade licenciadora (artigos 8.º e 9.º do DL n.º 151-B/2013). Após a apreciação da conformidade do EIA e a emissão do parecer preliminar promove-se a abertura de um período de consulta pública, nos termos do artigo 15.º do DL n.º 151-B/2013, através do qual todos os interessados podem expor o juízo que fazem sobre o projecto. Este juízo pode ter um carácter positivo ou negativo, sendo que, em regra, sempre que uma associação ambiental participa na consulta pública apresenta um juízo negativo que pode ditar a improcedência do projecto, com a emissão de uma DIA desfavorável, tal como ocorreu na estudada DIA da Barragem dos Melros. Desta participação pública resulta um relatório que é enviado pela Autoridade de AIA à Comissão de Avaliação no prazo de sete dias a contar da conclusão do período de consulta pública. Depois de receber este relatório a Comissão de Avaliação dispõe de 25 dias para emitir o parecer final, que visa apoiar a tomada de decisão relativamente à viabilidade ambiental do projecto, e a autoridade de AIA tem o mesmo prazo (a contar da recepção de todos os documentos) para preparar a proposta de DIA, tendo em consideração o Parecer da Comissão de Avaliação. Por fim, temos a promoção de um período de audiência prévia de interessados (artigo 17.º do DL n.º 151-B/2013), e a preparação da DIA que posteriormente será emitida ou pela Autoridade de AIA ou pelo Ministro do Ambiente, discussão para que remeto infra.
A DIA, tal como dispõe o artigo 18.º do DL n.º 151-B/2013, fundamenta-se num índice de avaliação ponderada de impactes ambientais, definido com base numa escala numérica, correspondendo o valor mais elevado a projectos com impactes negativos muito significativos, irreversíveis, não minimizáveis ou compensáveis. Essencialmente a DIA consiste num resumo do conteúdo do procedimento, ou seja, no “sumo” que dele se extrai, que inclui pareceres apresentados por entidades consultadas, resumo da consulta pública e as razões de facto e de direito que justificam a tomada de decisão.
O conteúdo da DIA pode ser favorável, favorável condicionada e desfavorável (deixamos fora do estudo os casos de deferimento tácito, artigo 19.º do DL n.º 151-B/2013). Cumpre saber que a DIA não é condição suficiente, mas sim condição necessária para a execução de determinado projecto, isto significa que é condicionante de actos subsequentes, designadamente do possível futuro acto de licenciamento ou de autorização de projectos que recaem no âmbito do procedimento de AIA, considerando que este só pode ser praticado após a notificação da respectiva DIA favorável ou favorável condicionada ou na decorrência de deferimento tácito. Mais, a DIA condiciona também o conteúdo do potencial acto licenciador, na medida em que o licenciamento ou a autorização do projecto deve indicar a exigência do cumprimento dos termos e condições fixados na DIA expressa ou na decisão expressa sobre a conformidade ambiental do projecto de execução (artigo 22.º, n.º2 do DL n.º 151-B/2013). Este carácter condicionante da DIA também se pode constatar pelo disposto no artigo 22.º, n.º3 do DL n.º 151-B/2013 ao considerar nulos os actos praticados com desrespeito pelos números anteriores.
O cunho condicionante da DIA chama à colação a problemática da sua força jurídica, questão que criou ruptura entre a doutrina portuguesa. Colaço Antunes reconduzia a decisão de impacte ambiental materialmente a um acto administrativo vinculativo que exclui a liberdade de apreciação à Administração, contrariamente, Maria da Glória Garcia aplicava a regra geral do artigo 98.º, n.º 2 do CPA, entendendo o resultado da AIA como um parecer obrigatório mas não vinculativo.
Esta questão já não se coloca, pois foi clarificada com a aprovação do Decreto-Lei n.º 69/2000, que incontestavelmente consagrou a força jurídica vinculativa da DIA, mantendo-se esta solução no actual regime no seu artigo 22.º do DL n.º 151-B/2013. Assim não procedeu a consideração da decisão jurídica de Avaliação de impacte ambiental enquanto um mero acto opinativo ou um simples parecer, isto porque, tal consideração desvirtuaria todo o procedimento administrativo enquadrado na AIA. Portanto, o cerne da questão, como nos diz Vasco Pereira da Silva, não recai sobre a “vinculatividade” ao nível interno, mas sim ao nível externo, de actos produtores de efeitos lesivos. Neste sentido, a relação entre a DIA e o acto autorizador pode figurar:
§  DIA favorável – nada obsta ao licenciamento pela autoridade licenciadora, mas não há qualquer dever de licenciar o projecto;
§  DIA favorável condicionada – a autoridade licenciadora não tem dever de licenciar, mas em caso de licenciamento, o acto permissivo deve estar condicionado à realização do previsto na DIA e acompanhado de medidas destinadas a evitar, minimizar ou compensar tais impactes negativos;
§  DIA desfavorável – o projecto não pode ser aprovado pois acarreta sacrifícios ambientais que não superam os potenciais benefícios.
O sentido decisório da DIA releva não apenas para a execução do projecto, mas também para aferir da autoridade competente para a sua emissão, segundo a convicção da autoridade de AIA. Assim, se a autoridade de AIA considerar que existem fundamentos para a emissão de DIA em sentido favorável ou favorável condicionada é sob esta autoridade que recai a competência para a emissão (artigos 16.º, n.º 6, e 19.º, n.º 1, do DL n.º 151-B/2013). Inversamente, se a autoridade de AIA considerar que existem fundamentos para a emissão de DIA em sentido desfavorável, cumpre-lhe remeter ao membro do Governo responsável pela área do ambiente, actualmente o Ministro do Ambiente, Ordenamento do Território e Energia, a respectiva proposta de DIA, para que este órgão a emita (artigos 16.º, n.º 7 e 8, e 19.º, n.º 1, do DL n.º 151-B/2013).
Na primeira situação, em que a autoridade de AIA é competente para a emissão da DIA, esta deve ser emitida no prazo máximo de 50 dias «contados da data de cessação da suspensão», ao abrigo do disposto no artigo 16.º, n.º 6, do DL n.º 151-B/2013. Mas como nos diz Rui Tavares Lanceiro, “do elemento literal não resulta claro qual a suspensão de que se está a falar. Na medida em que o mesmo artigo 16.º do RJAIA estabelece a suspensão do procedimento (ou seja, do prazo para a emissão da DIA) durante a fase de “articulação”, no seu n.º 3, parece resultar do elemento sistemático ser esta a suspensão cujo termo é relevante pois é a partir desse momento que começa a contar o prazo de 50 dias”. Nesta sede é também relevante a suspensão que ocorre durante a fase de audiência prévia e diligências complementares, tal como refere o artigo 17.º, n.º 2 do DL n.º 151-B/2013.
Na segunda situação, em que a DIA deve ser emitida pelo Ministro do Ambiente, Ordenamento do Território e Energia, a proposta de DIA deve-lhe ser enviada até 10 dias antes do termo do prazo de 50 dias, dispondo o Ministro de 10 dias para a emissão da DIA, a contar após a remessa da proposta de DIA (artigo 16.º n.º 7 e 8 do DL n.º 151-B/2013). Note-se que também este prazo se suspende nos termos do artigo 17.º, n.º 2 do DL n.º 151-B/2013.
Desde logo este regime suscita questões duvidosas: qual será a necessidade para que sejam competentes duas autoridades e para que se faça variar esta competência do sentido decisório da DIA?
Para darmos resposta a esta questão carecemos de focar alguns pontos. Primeiramente cumpre saber que o membro do Governo pode também ele emitir uma DIA favorável ou favorável condicionada, isto porque ele não se encontra vinculado pela apreciação feita pela autoridade de AIA. Todavia, nestes casos existe um dever de fundamentação agravado ou qualificado por forma a afastar o juízo técnico feito pela autoridade de AIA. O segundo ponto prende-se com o nível hierárquico das entidades competentes para a emissão. Como é óbvio o membro do Governo consubstancia um órgão hierarquicamente superior, mas neste regime a sua competência decisória está dependente da ponderação feita pela autoridade de AIA (órgão hierarquicamente inferior). Por fim, o terceiro ponto e talvez o mais pertinente reporta-se ao princípio da legalidade administrativa (artigos 2.º, 3.º, n.º 3, e 266.º, n.º 2, da CRP), este integra dois sub-princípios: o da prevalência ou preferência da lei (vertente negativa) e o da reserva de lei (vertente positiva). O primeiro estabelece que a actuação da administração depende de uma norma legislativa que defina previamente as atribuições das entidades, as competências dos órgãos administrativos e os termos e critérios da sua actuação, o que permite o controlo pelo poder judicial do seu exercício. Ora, indo ao encontro da juízo feito por Rui Lanceiro Tavares, “ao colocar a competência para a emissão do acto em causa, a DIA, na dependência de um juízo de um órgão administrativo – não controlável judicialmente – o RJAIA não cumpre o seu dever de determinação da competência decisória. Uma situação como esta – quando não resulta da norma legal habilitante a competência de certo órgão – não permite antecipar qual o órgão competente para a emissão do acto, violando o princípio da legalidade administrativa”. O mesmo autor conclui então pela inconstitucionalidade, por violação do princípio da legalidade, da competência variável para a emissão de DIA. Tiago Antunes chega a considerar esta solução uma “verdadeira aberração normativa, a qual deverá ser corrigida o mais brevemente possível”.
            Pois bem, somos levados a concluir que não há qualquer necessidade para esta variação de competência na emissão de DIA, tal como não há qualquer motivo jurídico lógico e compreensível para que o regime dite esta solução. O que legislador quis com esta inovadora solução foi o descompromisso entre a intervenção do poder político e a emissão de uma DIA favorável ou favorável condicionada em que o valor ambiente e a sustentabilidade ambiental se pudessem vergar ao poder económico.
            Ao navegar pela internet descobri na página da Agência Portuguesa do Ambiente as DIA’s emitidas em Portugal desde o ano de 2000 até à actualidade. A curiosidade e a possibilidade de ter uma percepção mais ampla e estudada da emissão de DIA’s e do seu sentido decisório, conduziram-me à realização de uma análise estatística, elaborada de acordo com os dados que constam da referida página.
Numa universalidade de mais de 1000 DIA’s emitidas (independentemente da entidade emissora), cerca de 93% são DIA’s com um sentido decisório favorável condicionado. Em sentido decisório desfavorável, encontramos cerca de 7% das DIA’s, e, por fim, incredulamente, no ano de 2008 deparamo-nos com uma DIA favorável, sem qualquer condicionamento (parece que o projecto “instalação avícola de produção de ovos de galinhas poedeiras em bateria” na freguesia de Paio Mendes faz história no Regime de Avaliação de Impacte Ambiental).
Que conclusões retirar deste estudo estatístico? Em primeiro, que a maioria dos projectos que caem no âmbito do procedimento de AIA podem vir a ser executados, mas mediante condições específicas que permitam diminuir, minimizar ou compensar os seus impactes negativos por forma a ir ao encontro de uma sustentabilidade ambiental. Contudo, há que ter em atenção que quando os impactes ambientais são significativamente negativos, irreversíveis e não minimizáveis, o sentido da DIA deve ser desfavorável, pois da ponderação entre livre iniciativa económica e o valor ambiente, este último prevalece, ou pelo menos, deveria prevalecer. A segunda conclusão, que na verdade não é uma conclusão mas sim uma reflexão minha, prende-se com uma questão que se impregnou na minha cabeça, após fazer este estudo, que é a seguinte: no local de construção de todos estes projectos, que contaram com DIA’s em sentido favorável ou favorável condicionada, havia algo prévio, um ambiente próprio daquele lugar, que aparece sub-valorizado quando a maior parte dos projectos podem ser executados. Existe uma diferença tão significativa entre os projectos que se podem realizar, ainda que com condicionamentos, e os projectos que não podem avançar, que sou conduzida à evidência de que o ambiente está em segundo plano. Parece existir uma medida que evita, minimiza ou compensa o impacte negativo para todos os impactes negativos que se verificam, o que contribui para justificar o extenso número de DIA’s com um sentido favorável condicionado.
É com esta reflexão que surge o desfecho deste primeiro texto, não percas o próximo post, porque eu também não!

Bibliografia
§  Vasco Pereira da Silva, Verde Cor de Direito – Lições de Direito do Ambiente, páginas 153 a 169
§  Colaço Antunes, O procedimento Administrativo de Avaliação de Impacto Ambiental, páginas 588 e 589
§  Pedro Portugal Gaspar, A Avaliação de Impacte Ambiental, páginas 126 a 141
§  Alexandra Aragão, Figueiredo Dias e Maria Ana Barradas, O novo regime da AIA: a avaliação de previsíveis impactes legislativos
§  Dr. Rui Tavares Lanceiro, A instrução do procedimento de AIA – uma primeira análise do novo RJAIA in Revisitando a avaliação de impacto ambiental
§  Dr. Tiago Antunes, A decisão do procedimento de AIA in Revisitando a avaliação de impacto ambiental

§  http://sniamb.apambiente.pt/diadigital/ (recolha de dados para estudo estatístico)

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