Um problema que se levantou ao longo da evolução do direito do ambiente, e também do direito administrativo, é o de saber se um acto administrativo autorizativo sana a conduta que seria ilícita.
A titulo introdutório parece necessário esclarecer que em direito do ambiente este problema surge especialmente quando se está perante uma situação de relações jurídicas multilaterais ambientais. Estas relações revelam que o direito do ambiente não tem eficácia “inter partes”, já que qualquer acto praticado pela administração no âmbito ambiental tem repercussões na esfera de várias pessoas jurídicas, na sua grande maioria particulares. Quer-se com isto dizer que a relação, por exemplo, entre administração e um particular aquando da concessão de uma licença não afecta apenas as esferas jurídicas dos intervenientes do procedimento mas também nos restantes possíveis afectados. E não se pense que estes possíveis afectados apenas são os que têm interesses directo e concreto. O nosso CPTA vem prever várias formas de se defender interesses difusos atribuindo legitimidade processual a quem o quiser fazer.
Posto o que foi dito é agora importante delimitar o âmbito do problema que se vai analisar de forma a que não surjam confusões ou divagações que nada acrescentam ao tema a explorar. O que se procura analisar neste texto é a possibilidade, ou não, de, havendo a relação multilateral ambiental, a administração poder sanar uma conduta ilícita através de um acto autorizativo, bem como as consequências e soluções hipotéticas para um problema deste género.
Assim em primeiro lugar há que enunciar as principais formas de resolução do problema que já existem. A primeira é a teoria da unidade da ordem jurídica, teoria esta que, tal como o próprio nome sugere, prefere a concordância de soluções na ordem jurídica pelo que um acto autorizativo sanaria qualquer ilicitude que se viesse a cometer posteriormente. Os defensores desta teoria apresentam alguns argumentos como ser preferível haver a mesma solução em toda a ordem jurídica de forma a que a confiança dos seus intervenientes não possa ser afectada, bem como que o conceito de ilicitude deve ser igual em qualquer que seja o ramo do direito pelo que a partir do momento em que a conduta deixa de ser ilícita num ramo essa actuação deixa de ser em qualquer outro ramo, quase que um toque de Midas da administração.
Esta ideia apesar de resolver facilmente o problema parece ter algumas falhas já que a unidade do sistema não vem prevista na Constituição Portuguesa e portanto não tem força suficiente para ser critério exclusão de ilicitude de uma conduta, além de que ao concordar-se com esta teoria está-se a esquecer as diferentes realidades que os diferentes ramos de direito abarcam, sendo por isso, no meu entendimento de se excluir esta solução.
Uma outra teoria que existe denomina-se ilicitude diferenciada que defende uma delimitação funcional da ilicitude. Por outras palavras, os defensores desta teoria preferem fazer uma definição da ilicitude de uma conduta de forma independente consoante se esteja no ramo civil, administrativo ou penal. Esta posição tem a seu favor o que a teoria da unidade do sistema tem contra, ou seja, os efeitos da ilicitude em direito administrativo são diferentes dos efeitos em direito civil, do mesmo modo que as causas de exclusão da ilicitude em direito civil são diferentes das mesmas causas em direito penal. Nesta linha de pensamento existiria sempre uma barreira às normas administrativas que legitimem condutas ilícitas que seria o perímetro de aplicação dessa norma em direito administrativo. Esta teoria numa primeira abordagem parece ser a mais correcta já que não permite que terceiros não percam as suas garantias substantivas dadas pelos outros regimes que não o administrativo, e permite até evitar condutas a evitar por outros ramos de direito.
Contudo após um pensamento mais profundo sobre esta situação chega-se à conclusão que esta teoria apresenta grandes problemas. Desde logo um pensamento tão fechado da raridade jurídica deixa de poder responder aos problemas que a vida em sociedade levanta, veja-se que seria impossível numa relação jurídica que envolve a administração apenas aplicar ou o direito administrativo ou o direito civil, pelo que deve-se dizer que esta teoria apresenta-se muito desligada da realidade de um ponto teórico. Depois num plano mais prático surge um problema ainda pior, que se envolve com a questão de que mesmo sendo atribuída legitimada para proceder de uma certa forma em direito administrativo e não em direito civil, o resultado poderia ser, no mínimo, incompreensível e insustentável para o sujeito. Exemplificando, se A pede uma licença que lhe é concedida pela administração para exercer uma actividade que pelo regime civil é ilícita existe aqui um grave problema sobre qual deve prevalecer. Sob o ponto de vista teórico vê-se que a situação é possível, no ramo administrativo a licença não padece de qualquer problema bem como a actividade pode ser livremente exercida, mas no plano civil já não pode. Aqui qual é a solução? A deixa de exercer a actividade apesar de ter direito a tal? A continua a exercer a actividade apesar de ter direito a tal? Esta teoria não resolve, e parece-me a mim, porque sendo tão extremista e fechada não o pode fazer.
Numa terceira linha apresenta-se a solução dada por Gomes Canotilho que procura solucionar o problema através de um método de aplicação caso a caso e não uma solução geral e abstracta, ou seja, olhando para cada caso em concreto e passando os seus requisitos o acto autorizativo da administração contagiaria o resto da ordem jurídica, mas não o faria sem antes prever todas as condições dadas pelo autor.
Esta ideia parece ser a mais correcta das três apresentadas porque se mostra como o melhor dos dois mundos porque representa a unidade jurídica necessária para não haver soluções disformes no ordenamento jurídico, bem como se preocupa com a realidade dos outros ramos de direito.
Porém continua a ver-se um problema semelhante ao principal visto na teoria da unidade da ordem jurídica que se prende com a situação de privar os demais sujeitos de poder agir contra a actuação alinda que licita, se bem que essas situações serão bem menores.
Veja-se o caso em que é atribuída uma licença que tem em conta todos os factores, prevê todas as situações expectáveis e ainda obriga o sujeito a quem se concede a licença a pagar uma quantia pela responsabilidade pelo facto licito, mas posteriormente vê-se que essa actividade prejudica o ambiente de um modo que não se previa nem sequer conseguia prever. Nessa situação Qual será a consequência? Deixar os prejudicados com a situação sem qualquer tutela? Acabar com a actividade prejudicando o sujeito que a praticava rompendo assim todo o investimento feito e esquecendo a confiança depositada no acto praticado pela administração? Esta é uma solução que pode acontecer muitas vezes e não e facilmente resolvida pela doutrina.
Ora no seguimento do que se mostrou e no caso que se tem vindo a seguir há que tentar encontrar soluções que possam ser mais justas que radicalizar uma solução uniforme que esquece a realidade, que em direito do ambiente, é bastante volátil.
Uma primeira opção parece ser mais radical, no sentido de retirar a licença atribuída anteriormente com fundamento no surgimento de novos factos. Esta solução parece ser numa primeira abordagem contudo apresenta alguns problemas já apresentados anteriormente relacionados com o investimento e confiança gerados pelo facto atributivo da licença. Pense-se por exemplo no caso em que uma fábrica constrói instalações e contrata trabalhadores e que sem culpa se vê privado de continuar a explorar a actividade. Pode ser a mais fácil de aplicar e a que maior equilíbrio à ordem jurídica pode trazer, mas nem sempre é a mais justa.
Por outro lado existe a solução de criar uma indemnização para compensar os danos não previstos ou actualizar essa indemnização se esta já existir. Apesar de ser uma boa opção também põe em causa a confiança que surgiu com o acto da administração porque pelas mesmas razoes ditas no parágrafo acima a actualização de valores pode fazer com que a actividade deixe de ser economicamente atractiva e por isso tem o efeito da solução citada acima.
Outra via será transferir essa indemnização para o Estado por ter o dever de garantir um ambiente sadio e por não ter previsto a agressão possível da actividade que autorizou. Esta solução pode ser injusta para a administração por responsabilizá-la sem culpa nos casos que boi foi possível prever a agressão, e pode levar a que a gravidade seja tal que seja inviável poder indemnizar os prejudicados.
Visto está que é muito difícil encontrar uma solução que seja aplicável a todos os casos de forma igual. E por isso penso que o problema aqui reside em saber como agir e reagir em termos de actos administrativos autorizativos. Pelo que foi dito parece-me a mim que a melhor solução será aplicar a teoria da ilicitude diferenciada ainda que de forma bastante mitigada. E isto porque não penso que seja possível à administração poder privar as garantias substantivas dos demais sujeitos sem que a actividade esteja a ser exercida. Contudo penso também que ainda que não tenha guarida constitucional o principio da unidade da ordem jurídica não deve ser esquecida e por isso é, em minha opinião, de aceitar que a autorização prive a possibilidade de responsabilizar o sujeito que polui. Então em que medida é possível articular estes dois regimes? A única possibilidade que encontro será apenas em situações que estejam em causa graves prejuízos para os sujeitos que apresentem caracter directo e concreto, excluindo assim a legitimidade para proceder em defesa de interesses difusos porque estes últimos terão sido previstos pela administração.
Quanto às soluções para casos que não estão previstos e posteriormente se revelam sou da opinião que apenas caso a caso se pode verificar a aplicação e cada uma, mas em ultimo análise a actividade tem de deixar de ser exercida de modo a não prejudicar o ambiente.
Bibliografia:
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CANOTILHO,J.J.Gomes, Relações Jurídicas Poligonais, Ponderação Ecológica de Bens e Controlo Judicial Preventivo,
SILVA, Vasco Pereira da, Verde Cor de Direito –Lições de Direito do Ambiente,
DIAS,José Eduardo Figueiredo, Direito Constitucional e Administrativo do Ambiente,
GOMES, Carla Amado, Introdução ao Direito do Ambiente
Vasco Simões; 20946
C
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Actos Autorizativos Jurídico
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Públicos e Responsabilid
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