14 de abril de 2014

DIA: Privilégio, batata quente, ou algo mais?


O procedimento de Avaliação de Impacto Ambiental (AIA), regulado actualmente pelo DL n.º 151-B/2013, de 31 de Outubro, conforme refere Carla Amado Gomes, assume um papel de extrema importância no Direito do Ambiente, a ponto de ser considerado, por várias Constituições, como imprescindível para a tutela do ambiente e de ter sido elevado a princípio de Direito Internacional geral, tanto pelo Tribunal Internacional de Justiça como pelo Tribunal Internacional para o Direito do Mar, visão esta seguida em Portugal por autores como o Mário de Melo Rocha.
Neste contexto, a Declaração de Impacto Ambiental (DIA), que surge no final deste procedimento e é o seu acto central, vai igualmente assumir uma grande importância, por tudo aquilo que implica. Com efeito, se é certo que uma DIA em sentido favorável, ou favorável condicionada, por si só, não é condição suficiente para que determinado projecto venha a ser executado, é condição necessária para o mesmo, não havendo lugar a licenciamento ou autorização de projectos se a DIA for desfavorável (sem prejuízo, é certo, do caso de deferimento tácito, previsto no Art.19.º/2 do D.L). Por outro lado, o conteúdo da DIA, nomeadamente condições nela contidas devem constar do licenciamento ou autorização do projecto, conforme refere o Art.22.º/2 do D.L, enquanto o nº3 prevê a nulidade de todos os actos praticados em desrespeito das exigências referidas acima.
Feitas estas considerações introdutórias, resulta de forma clara que estamos perante um campo fértil para discussões. A que me traz aqui hoje, neste belo dia de Primavera, prende-se com a questão da competência para a sua emissão.
Se é certo que o actual regime prevê, como analisarei infra, soluções altamente criticadas por alguma doutrina, um estudo mais aprofundado mostra que este sempre foi um tema que levantou algumas questões e inquietações. Proponho então, uma pequena viagem na máquina do tempo, para melhor compreendermos a matéria em causa.
A nossa primeira paragem dá-se no final da década de 90. Surgira recentemente a Directiva 97/11/CE, que o Estado Português deveria transpor até Março de 99, pelo que se vaticinavam algumas alterações.
Nesta altura, não existia ainda o conceito de DIA, como hoje a conhecemos. Existia, sim, a decisão de AIA, que cabia ao Ministério do Ambiente. Até aqui, nos termos do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 186/90 (com a redacção do Decreto-Lei n.º 278/97) estávamos perante um parecer que, se bem que obrigatório, se apresentava como não vinculativo, tendo em conta que o Art.6.º deste diploma previa que “A entidade competente para a aprovação do projecto deve ter em consideração, no respectivo licenciamento ou aprovação, o parecer da AIA (…) e, no caso da sua não adopção, incorporar as razões de facto e de direito que para tal foram determinantes.” Umas das alterações previsíveis era precisamente que este parecer se tornasse vinculativo.
Mas voltando à questão da competência, é de sublinhar, conforme notam Alexandra Aragão, Figueiredo Dias e Maria Ana Barradas, que este regime era criticado por implicar uma excessiva centralização de competências e pela circunstância de as comissões de avaliação serem compostas por técnicos pertencentes aos serviços do Ministério, o que vinha onerando o procedimento em termos da sua celeridade e eficácia. Por estes motivos, previam os Autores que o novo regime viria estabelecer centros de decisão decentralizados, bem como garantir a independência entre que realizaria as tarefas técnicas de avaliação e quem tomaria a decisão final.
É ainda de notar que, sobre o primeiro ponto, consideravam que, tendo em conta o princípio da organização administrativa de que as responsabilidades públicas coubessem prioritariamente a entidades mais próximas da população, para uma maior eficácia. Desta forma, defendiam que, se a entidade licenciadora fosse um organismo da administração estadual periférica ou da administração local, a autoridade da AIA deveria ser a Direcção Regional do Ambiente com jurisdição sobre a área onde o projecto se iria localizar. Se o projecto se localizasse na área de jurisdição de duas ou mais Direcções Regionais do Ambiente, a autoridade da AIA seria a Direcção Regional do Ambiente com maior área abrangida, podendo a outra ou outras Direcções Regionais participar nos trabalhos do “órgão avaliador”. Esta reflexão era concluída com a ressalva de que esta descentralização, embora bastante aconselhável, nunca deveria vir desacompanhada do “reforço dos recursos humanos, técnicos e financeiros dos organismos aos quais forem conferidas novas ou acrescidas competências”, sob pena de a intervenção legislativa não conseguir atingir os benefícios pretendidos.
E com isto, estamos prontos para avançar um pouco mais no tempo e perceber o que efectivamente mudou com este novo regime, que acabou por vigorar durante mais de uma década, até ser revogado pelo actual.
Estamos agora no ano de 2000. Nova década, novo século e novas normas sobre o procedimento de AIA, com o D.L nº 69/2000, de 3 de Maio.
Se é certo que este regime trouxe vários aspectos positivos, entre os quais o significativo reforço da força jurídica da decisão final do procedimento de AIA (o conceito de DIA surgiu com este regime), em relação a vários outros aspectos, são notórios os recuos em relação a soluções contidas na proposta de regime de AIA que em 1999 tinha sido levada à discussão pelo Ministério do Ambiente. Um desses aspectos foi precisamente o da competência decisória.
Com efeito, contrariamente ao que era previsto e desejado pelos Autores acima referidos, com o novo regime, a competência para a decisão final do procedimento, agora DIA, manteve-se com o membro do Governo encarregue da área do Ambiente, mais concretamente, o Ministro do Ambiente e do Ordenamento do Território, por via do Art.18.º/1. Tendo posteriormente escrito sobre o tema, estes lamentaram o facto de a intenção proclamada de estabelecer níveis decisórios desconcentrados no procedimento. Com efeito, e como referem, “na proposta para discussão pública determinava-se que somente em relação aos projectos constantes do Anexo I a decisão final de AIA caberia ao Ministro do Ambiente, sendo que nos restantes casos seriam competentes o Director-Geral do Ambiente ou o Director Regional do Ambiente, consoante a Autoridade de AIA fosse a DGA ou uma DRA. Procurava-se, pelo menos em alguns procedimentos, aproveitar as vantagens declaradamente reconhecidas à desconcentração administrativa.”
Outro Autor que encontra problemas no regime decisório é o Prof. Vasco Peeira da Silva. Com efeito, o Autor não concorda com a complexidade da “cadeia” decisória, que conta com a intervenção de três entidades diferentes: a Comissão de Avaliação que, no prazo de 25 dias a contar da recepção do relatório de consulta pública, e em face do conteúdo dos pareceres técnicos recebidos de apreciação técnica do EIA, daquele relatório e de outros elementos de relevante interesse, elabora e remete à AIA o parecer final do procedimento; a própria AIA, que deverá remeter ao Ministro competente a proposta de DIA; e o Ministro responsável pela área do Ambiente que, no espaço de 15 a contar da recepção desta proposta, deve emitir a DIA.
Segundo o Professor, existe uma diluição da competência por vários órgãos, naquilo que considera um bom exemplo de “passar de culpas”, além de uma ausência de parâmetros legais de decisão (isto sem prejuízo da regra da necessidade de fundamentação das decisões da autoridade de AIA ou do Ministro, quando contrárias à proposta da comissão, sob pena de invalidade).
Por outro lado, e à semelhança do que haviam feito outros Autores, como Figueiredo Dias, também o Prof. Vasco Pereira da Silva aponta neste sistema uma possível tendência concentradora, que teria levado à criação da AIA. Esta, parecendo à partida uma entidade autónoma, corresponderia, na realidade, a serviços do Ministério, e não tinha competência decisória própria.
Em conclusão, defendia como possíveis soluções para esta situação, e de forma a tornar o sistema mais simples, as seguintes:
- Ou se passava da proposta da Comissão de avaliação directamente para a decisão do Ministro, dispensando-se a intervenção intermédia (e supérflua) da autoridade da AIA,
- Ou a autoridade da AIA, “fazendo jus ao seu nome”, se tornava a entidade central do procedimento, sendo ela a emitir a DIA, mediante delegação de competência decisória para o efeito, delegada pelo Ministro, nos termos do Art.35.º e seguintes do CPA.
Em relação a estes últimos aspectos, não posso deixa de concordar com o Professor.
Em primeiro lugar, é certo que, por todas as implicações e condicionalismos que a DIA traz consigo (e que já acima referi), e apesar de a defesa do Ambiente ter a importância que lhe é reconhecida, para as entidades decisoras é sempre uma posição algo desconfortável a de tomar uma decisão tão importante, seja em que sentido for (e dar a cara por isso). A diluição de competência, que o Professor aponta, seria efectivamente uma maneira de dividir as culpas entre as entidades intervenientes, como que dizendo “Eu realmente decidi desta forma, mas x e y também diziam que deveria ser assim.” Como refere o Professor, todos são responsáveis, e ninguém é responsável. Mas penso que quando é atribuída uma responsabilidade desta dimensão, a(s) entidade(s) em causa deve apenas desempenhar o seu papel com o foco e, acima de tudo, a coragem que aquela exige. Mais importante do que “parecer bem ou não parecer mal”, deveria ser o efectivo cumprimento dos objectivos que norteiam o procedimento da AIA.
Em segundo lugar, parecem-me também oportunas as críticas feitas ao carácter concentrador deste sistema, pois que, a bem da agilização e desburocratização de todo este procedimento, qualquer uma das soluções apresentadas pelo Professor poderia ser acolhida, com efeitos benéficos.
Feita a visita deste regime, cumpre-nos fazer a última viagem na nossa máquina do tempo. Avancemos então treze Primaveras, até 2013, altura em que surge nova alteração de regime, com o D.L nº 151-B/2013, de 31 de Outubro (pelo meio, ainda houve alterações ao anterior regime, com o D.L nº 197/2005, mas estas não incidiram de forma significativa sobre a matéria deste texto).
Tendo os regimes anteriores, no que respeita à competência para emissão de DIA, sido alvo de largas e, a meu ver, fundadas críticas, eis que surge nova oportunidade de aperfeiçoar esta matéria.
Olhando então para a lei, percebemos que se mantém a elaboração de parecer técnico final de AIA pela Comissão de Avaliação, a remeter à autoridade de AIA, conforme dispõe o Art.16.º/1 do D.L, dispondo o nº6 que a DIA é emitida pela autoridade de AIA. À partida, parece ter sido adoptada a segunda solução proposta pelo Prof. Vasco Pereira da Silva, na sua crítica feita ao anterior regime. Contudo, logo a seguir, o nº7 estipula que, havendo fundamentos para a autoridade de AIA julgar que se justifica a emissão de DIA desfavorável, deve remeter a sua proposta para o membro do Governo responsável pela área do Ambiente. O Art.19.º/1 vem depois confirmar que a DIA é emitida por uma destas entidades, nos termos das disposições que acabei de referir.
Numa evolução surpreendente, o sentido que previsivelmente tomará a DIA determinará quem tem competência para a emitir. Mais, é o juízo de uma entidade (a autoridade de AIA), que vai levar a que seja esta ou o Ministro a emitir a DIA, resultando de forma clara da letra da lei, que a autoridade da AIA não tem competência para emitir DIA’s desfavoráveis.
Esta opção do legislador, pese embora o seu carácter recente, já foi alvo de alguma crítica.
Nesse sentido, cumpre desde já notar que, como refere Rui Lanceiro, sendo a proposta de DIA remetida ao Ministro, o que ocorrerá apenas quando, segundo o juízo da autoridade de AIA, esta deverá ser desfavorável, aquele membro do Governo não está vinculado a essa apreciação, podendo perfeitamente emitir uma DIA favorável ou favorável condicionada, sem prejuízo do dever agravado de justificação para o afastamento daquele primeiro juízo, que daí advirá. Da lei não resulta o contrário, ao que acresce o facto de o Ministro ser superior hierárquico da autoridade de AIA.
Para o Autor, o grande problema que se coloca está ao nível do princípio da legalidade administrativa, extraído dos Arts.2.º, 3.º/3 e 266.º/2 da CRP. “Este princípio tem, tradicionalmente, dois fundamentos principais: o fundamento democrático (a administração deve estar submetida ao poder legislativo, democraticamente legitimado); e o fundamento garantístico (garantia de previsibilidade da actuação administrativa e possibilidade de controlo judicial da actividade administrativa, nomeadamente a pedido dos cidadãos lesados por essa actividade). Trata-se, no fundo, da garantia do respeito pelo princípio do Estado de direito democrático.”
Do princípio da legalidade retira o subprincípio da precedência da lei, segundo o qual todos os actos da Administração deviam ter por base uma lei prévia, que determine as atribuições e competências das entidades administrativas. Por outro lado, a fixação legislativa da competência destes órgãos permite o seu controlo judicial.
Ora, neste regime, a alternância de competência para a emissão de DIA está dependente não de uma lei, mas do juízo de um órgão, pelo que à partida existe sempre um elevado grau de indeterminação, não sendo possível antecipar de forma segura, logo de início, a quem pertencerá a competência, o que consubstancia uma violação do princípio da legalidade, além do que dificulta o referido controlo judicial.
O Autor conclui assim que este regime é inconstitucional, por violação deste princípio da legalidade da Administração, isto sem prejuízo de eventuais questões passíveis de ser colocadas ao nível dos princípios da segurança e da igualdade.
Outro crítico deste regime é o Dr. Tiago Antunes, que considera a solução inaceitável.
Antes de mais, pois coloca obstáculos extra à emissão de DIA’s desfavoráveis, na medida em que estas têm de “subir” ao gabinete do Ministro para serem despachadas, o que exige que a autoridade da AIA finalize a sua apreciação até 10 dias ante do prazo de decisão, de forma a respeitar o tempo de actuação do Ministro, isto sob pena de já não ser possível emitir uma DIA desfavorável, mas apenas condicionalmente favorável. O Autor considera inadmissível que a lei estabeleça preferências apriorísticas por um determinado sentido de decisão, especialmente quando a decisão “desfavorecida” é aquela que mais protege o Ambiente, pondo fim ao projecto. Assim, considera estar em causa uma violação do principio da prevenção.
Por outro lado, critica também o facto de ser o sentido provável de uma decisão que vai determinar a competência para a sua tomada. Desta forma, poderia estar em causa o princípio da legalidade da competência, pois esta é manipulada consoante as inclinações decisoras de uma entidade individual, sendo a autoridade da AIA a decidir se intervém ou não.
Por tudo isto, Tiago Antunes conclui que estamos perante uma verdadeira “aberração normativa, a qual deverá ser corrigida o mais brevemente possível”.
Pela minha parte, e como já acima referi, considero que o anterior regime poderia e deveria receber uma alteração, a bem da celeridade e eficácia de todo o procedimento. Com o regime actual já não é sempre necessário que a proposta de DIA chegue ao nível ministerial. No entanto, mantém-se uma certa burocracia de processo no caso de DIA’s potencialmente desfavoráveis, que não me parece justificável. Tal como não me parece justificável o critério que o determina.
É certo que uma decisão, quando tomada por um Ministro tem todo um outro peso. É certo também que, em certos casos, pela particular importância ou sensibilidade da matéria, talvez até seja necessário fazer o procedimento avançar mais um degrau, antes de ser proferida uma decisão.
Nessa medida, não me chocaria, até pelo contrário, me pareceria perfeitamente justificável, que, regra geral, a decisão devesse caber à autoridade de AIA, por todos os motivos já referidos, e deveria esta entidade ser competente para emitir não apenas DIA’s favoráveis e favoráveis condicionadas, mas também desfavoráveis. A eventual remissão da proposta de AIA parecer-me-ia perfeitamente admissível, mas em casos expressamente determinados na lei, que poderiam abranger certas matérias sobre as quais (como já referi, pela sua importância, sensibilidade, etc.) só o Ministro devesse poder decidir ou até mesmo casos de fundadas dúvidas da autoridade da AIA.
Em suma, estabelecer-se um critério objectivo para determinar quando o procedimento poderia ou não chegar ao Ministro competente, em vez de um critério como o actual, que varia de situação para situação. Dessa forma, estaria respeitado o princípio da legalidade.

Bibliografia
- ANTUNES, Tiago, A decisão do procedimento de AIA in Revisitando a avaliação de impacto ambiental
- ARAGÃO, Alexandra/DIAS, José Eduardo Figueiredo/BARRADAS, Maria Ana, Presente e Futuro da AIA em Portugal, in Revista do CEDOUA, 1, ano I, 1998
- ARAGÃO, Alexandra/DIAS, José Eduardo Figueiredo/BARRADAS, Maria Ana, O novo regime da AIA: a avaliação de previsíveis impactes legislativos, in Revista do CEDOUA, 5, ano III, 2000
- GOMES, Carla Amado, Introdução ao Direito do Ambiente, Lisboa, AAFDL, 2012
- LANCEIRO, Rui, A instrução do procedimento de AIA – uma primeira análise do novo RJAIA in Revisitando a avaliação de impacto ambiental
- PINA, Catarina Moreno, Os Regimes de Avaliação de Impacte Ambiental e de Avaliação Ambiental Estratégica, Lisboa AAFDL, 2011
- SILVA, Vasco Pereira da, Verde Cor de Direito – Lições de Direito do Ambiente, Coimbra, Almedina, 2002


Bruno Girão
Nº 20851


4º Ano, subturma 2

Sem comentários:

Enviar um comentário