13 de abril de 2014

Da “poluição jurídica” à Codificação? Será a solução?


O problema da codificação em matéria ambiental está intimamente ligado às próprias fontes de Direito do Ambiente, sendo que, para melhor compreender uma matéria cabe explicitar outra. Assim sendo, cabe fazer uma análise prévia das fontes de Direito do Ambiente para posteriormente assumir posição relativamente à justificabilidade da Codificação em matéria ambiental.

Tendo conhecimento de que estas fontes, no quadro do Direito Ambiental, são muito diversificadas e se inserem em diferentes níveis, penso que se justifique começar a análise das fontes pelas que têm natureza Internacional, uma vez que o Direito do Ambiente nasceu primeiro à escala internacional.

No domínio internacional foram convenções e declarações dos finais dos anos 60 que vieram dar vida às preocupações em matéria de ambiente, e à formação de princípios consuetudinários de preservação da Natureza. Estas fontes podem assumir um âmbito multilateral ou bilateral. A saber:

- As fontes de âmbito multilateral são as que são emitidas no quadro de organizações internacionais, como por exemplo a O.C.D.E, a O.N.U. ou a O.U.A..  Como exemplos de fontes de âmbito multilateral temos a Declaração da Conferências das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano (de Estocolmo, datada de 1972) ou as Convenções-Quadro da Conferência do Rio de Janeiro (datada de 1992).

- As fontes de âmbito bilateral consistem nas fontes que regulam as relações de vizinhança em matéria ambiental, racionalizando o aproveitamento de recursos comuns ou prevenindo a poluição transfronteiriça. Pode neste caso dar-se como exemplo mais próximo os tratados celebrados entre Portugal e Espanha relativos à gestão dos recursos hídricos.

No ordenamento jurídico português estabelece-se a receção imediata das normas e princípios de Direito Internacional geral ou comum pelo artigo 8º, nº1 da Constituição, considerando que as mesmas “fazem parte integrante do direito português”; já no nº2 do mesmo artigo estatui-se relativamente às normas constantes de convenções internacionais que estas vigoram, pelo princípio da receção, após ratificação ou aprovação e publicação oficial.

De acordo com a conceção monista com primado do Direito Internacional (consagrada na Constituição) as normas internacionais ocupam a posição de topo na hierarquia das fontes de direito, ainda que haja que distinguir entre as normas e os princípios de direito internacional geral ou comum, que prevalecem sobre qualquer outra fonte, e as normas constantes de tratados e convenções internacionais, às quais a lei fundamental parece ter atribuído valor supra-legislativo mas infra-constitucional, ao submete-las à fiscalização da constitucionalidade (artigos 277º e seguintes).

É, no entanto, importante chamar à atenção que para além das fontes tradicionais - aquelas que correspondem a tratados internacionais, e que têm as suas regras específicas - no quadro do Direito do Ambiente tem surgido e tem tido uma grande importância o surgimento da chamada “soft law. Dá-se o nome de “soft law” porque do ponto de vista jurídico não têm as mesmas condições de vinculatividade do que as convenções internacionais, mas, apesar de não ter a mesma vinculatividade, o que é facto é que esse “direito brando” acaba por ter uma influência determinante. Vejamos como exemplo desta “soft law” as grandes declarações em matéria ambiental, consequência de todas as cimeiras, desde Estocolmo ao Rio de Janeiro, à África do Sul. Estas declarações são isso mesmo, declarações. Não têm uma eficácia imediata, no entanto, o facto de surgirem cria nos Estados convicções de obrigatoriedade de mudança, mudança essa que se verifica na adoção de regras.

Para além das fontes internacionais existem ainda as fontes europeias. E, no entender do Professor Vasco Pereira da Silva, “europeu não é internacional”[1]. A justificação do Professor para o afirmar é o facto de na Europa existir uma ordem jurídica comum que por um lado, integra normas com fontes comunitárias, com as normas jurídicas nacionais. Diz o Professor que se assemelha a um Estado Federado, mas que na realidade não é uma Federação, é, sim, uma realidade sui generis que está a meio caminho entre o Direito Internacional e o Direito Interno, não podendo no entanto ser considerada apenas como Direito Internacional (como faziam/tendem a fazer os constitucionalistas). Esta realidade é de tal maneira importante que na Europa há mesmo uma Constituição em sentido material, porque na Europa há regras acerca da divisão de poderes, não só entre os órgãos da União, como entre os órgãos da União e os órgãos de diferentes países.

Ora, no ordenamento comunitário, a matéria do ambiente encontrava-se ausente dos tratados constitutivos das comunidades europeias[2], mas isso iria ser remediado a partir do Ato Único de 1987, tendo passado a ser objeto de tratamento autonomizado ao nível dos “textos fundadores”.

No entanto, desde pelo menos os anos setenta que as preocupações de natureza ambiental se manifestam no quadro da Comunidade Europeia, seja:

a)      Ao nível das políticas comuns (agrícola, de pescas);

b)      Ao nível de específicas manifestações normativas, podendo assumir a forma:

a.   De regulamentos - imediatamente aplicáveis.
(Exemplo: Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho nº 1980/2000/CE, de 17 de Julho de 2000, que estabelece um sistema comunitário de atribuição do rótulo ecológico)

b.  De diretivas - que impõem um fim a atingir mas deixam aos países membros a escolha dos meios para o realizar.
(Exemplo: Diretiva nº 85/337/CEE, do Conselho, de 27 de Junho de 1985, alterada pela Diretiva nº 97/11/CE, do Conselho, de 3 de Março de 1997, que estabelece o regime europeu de avaliação de impacte ambiental)

c.     De decisões - que são obrigatórias para os respetivos destinatários
(Exemplo: Decisão do Conselho 97/872, de 1997, que estabelece um programa de apoio às organizações não-governamentais de proteção do meio-ambiente)

d. De recomendações e de resoluções - que, apesar de não vinculativas, não deixam de ser importantes enquanto instrumentos de afirmação de princípios e de valores ambientais
(Exemplo: Recomendação 79/3, de 19 de Dezembro de 1978, que propõe um sistema uniforme de avaliação dos custos da proteção ambiental na atividade industrial)

Todas estas “disposições” justificam o surgimento de um verdadeiro Direito Europeu do Ambiente, cuja importância não decorre apenas do facto das respetivas normas gozarem de aplicabilidade direta e de primazia sobre as fontes internas, nem também da existência de mecanismos jurisdicionais destinados à sua efetivação (mesmo contra a vontade dos Estados), como sobretudo do seu papel dinamizador de uma “consciência jurídica” ambiental a nível europeu.

Analisado o plano externo (quanto às fontes) segue-se o plano interno (plano nacional). No plano nacional há que distinguir os diferentes níveis que compõem as fontes de direito ambiental.

Escusado será dizer que é primordial começar pela Constituição, a “nossa” Lei Fundamental. Na CRP as questões ambientais assumem uma dupla dimensão, a objetiva e a subjetiva. Em primeiro lugar consagra a proteção do ambiente enquanto bem objetivo, reconduzindo ao artigo 9º alíneas d) e f) da Constituição e assumindo como uma tarefa fundamental do Estado. Por outro lado, consagra um direito fundamental ao ambiente no artigo 66º da Constituição[3]. Considera o Professor Vasco Pereira da Silva que os dois vetores fundamentais apontados dão origem a uma verdadeira Constituição do Ambiente.

De referir ainda a Legislação Ordinária onde há que considerar, no nosso ordenamento jurídico, múltiplas fontes ambientais nas diferentes modalidades:

a)      Lei de Bases
(Exemplo: Lei de Bases do Ambiente, Lei 11/87, de 7 de Abril)[4];

b)      Lei
(Exemplo: Lei das Organizações Não-Governamentais de Ambiente, Lei nº 35/98, de 18 de Julho);

c)       Decreto-Lei
(Exemplo: Decreto-Lei nº 194/2000, que estabelece o regime da licença ambiental);

d)      Decreto-Legislativo Regional
(Exemplo: Decreto-Legislativo Regional nº 15/2000/A, de 21 de Junho, que cria a reserva florestal de recreio do Pinhal da Paz ou da Mata das Criações, na ilha de São Miguel);

 No plano interno identificamos ainda:

a)      Os Planos
(Exemplo: o Plano Diretor Municipal);

b)      Outros regulamentos administrativos
(Exemplo: Decreto-Regulamentar nº 9/2000, de 22 de Agosto, que cria o Parque Natural do Tejo Internacional);

Trata-se de uma atividade de produção normativa a cargo da Administração de que resultam múltiplas disposições reguladoras de problemas ambientais.

Para finalizar a matéria das fontes existem ainda outras formas de atuação administrativa, como sejam os atos e os contratos administrativos[5].
  
Como exemplos desta situação podemos apresentar os seguintes:

- O ato administrativo de licenciamento de uma urbanização, que fica condicionado à realização e manutenção de espaços verdes pelo particular;

- O contrato de concessão de exploração da ponte Vasco da Gama, que estabelece obrigações contratuais em matéria de ambiente, a cargo do contraente privado, como sejam a utilização de técnicas e materiais de construção não poluentes, a escolha de candeeiros de iluminação pública que apenas incidam sobre o tabuleiro da ponte, de modo a não encandear os peixes, ou o encargo de recuperação das salinas do Samouco.

Concluindo, é óbvio que perante uma tal diversidade de fontes, a que se veio juntar a “tendência infantil” dos fenómenos emergentes para a proliferação e a dispersão de textos normativos, se veio acentuar o risco de o universo do direito do ambiente parecer uma “selva”.

Para nos orientarmos na “selva” convém haver um “mapa do tesouro”, e se “é difícil encontrar o mapa do tesouro” mais será orientarmo-nos sem ele.

Esta metáfora[6] ilustra bem a confusão e desorganização presente no direito ambiental. É realmente difícil saber qual a norma jurídica aplicável porque estas normas muitas vezes repetem-se umas às outras, não estabelecendo muitas vezes regimes completos, detalhados.

É precisamente por existirem muitas zonas no direito ambiental que apesar de reguladas, essa regulação é incompleta, repetida ou não se encontra sequer realizada, que se discute a necessidade de fazer apelo ao legislador no sentido da codificação jurídica no domínio ambiental.

Este problema da codificação em matéria ambiental surgiu com especial foco na Alemanha, sobretudo na sequência da nomeação de uma comissão de especialistas que apresentou em 1997 (após cinco anos de trabalho) um projeto de “Código do Ambiente”.

Contudo, o Professor Vasco Pereira da Silva discorda da ideia de códigos do século XIX. Os códigos positivistas (fechados, sistemáticos e científicos) cederiam perante uma lógica de código aberto, que introduza uma simplificação no âmbito da realidade administrativa. Como se diz no Direito Alemão neste caso a codificação pode trazer mais direito com menos normas - “mehr recht mit weniger normen”[7].

A codificação serviria para introduzir alguma racionalidade nas questões ambientais, ainda que outros países tenham feito esta experiência e esta nem sempre tenha sido bem-sucedida.

No quadro da Alemanha, há um código ambiental que nunca chegou a ser aprovado, mas há, a nível setorial, numerosas tentativas de codificação que foram bem-sucedidas.

Podemos então falar em duas perspetivas de codificação no domínio ambiental:

- A codificação geral, no quadro dos domínios comuns a todas as questões ambientais;

- Ou modelos de codificação especial, em relação a certos bens, por exemplo a água, as questões do ar, o ruído. Podendo haver, portanto, codificações parcelares, no quadro de uma determinada realidade.

Na perspetiva do Professor tanto umas como outras “são igualmente necessárias, porque elas correspondem ao criar do “mapa do tesouro” nesta realidade confusa em que há muitas leis e muitas vezes pouco direito, que corresponde ao quadro do direito do ambiente”[8].

Apresentemos então as vantagens e os inconvenientes à codificação.

Do lado dos inconvenientes apontados estão a rigidez e a estagnação decorrentes da codificação de realidades novas e em constante mutação. Contrapõe esta crítica o Professor Vasco Pereira da Silva defendendo que a codificação deve ser permanente e regular.

O professor defende que deve haver um esforço de racionalização e de sistematização que se revelaria como essencial. No quadro de alguns domínios parcelares ela inclusive já existe, também por causa da influência europeia, como por exemplo a lei da água ou a lei do ruído que, de alguma maneira, são codificações parcelares. No entanto, para além dessas codificações parcelares, era importante também insistir no quadro de uma codificação geral das questões do ambiente que são comuns a todos. E se, ainda assim as desvantagens residissem na lógica da rigidez, esta deveria ser ultrapassada pela lógica da flexibilidade. Assumir as normas de Direito do Ambiente como normas abertas para uma sociedade aberta. As vantagens seriam inúmeras, desde logo, porque quer a administração pública, quer os cidadãos, com essa codificação, sabem qual é o direito aplicável, e não é fácil saber sempre qual é o direito aplicável, uma vez que há inclusive ainda diplomas em vigor que datam de 1910.

Assim, ainda que já brevemente apresentadas na oposição às desvantagens, as vantagens na codificação residem essencialmente na certeza e na segurança jurídica relativamente à aplicação do Direito do Ambiente por parte das autoridades públicas e mesmo à proteção dos direitos dos particulares em matéria ambiental. A possibilidade de unificação e de sistematização do domínio ambiental, permitindo a simplificação e harmonização das disposições aplicáveis, assim como a eliminação de repetições e contradições inúteis em diplomas seriam apenas outras das vantagens no caso de seguir o caminho da codificação.

Acompanho o Professor Vasco Pereira da Silva no sentido favorável à codificação uma vez que de facto parece-me que as vantagens suplantam as desvantagens apresentadas pelos opositores à codificação, já para não falar que todas as desvantagens por estes apresentadas são críticas “pensadas” para modelos de código “fechados”, que vigoravam no século XIX. Apoio a posição do Professor ao defender uma codificação aberta e flexível, que deve ser submetida a periódicas revisões.






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BIBLIOGRAFIA:


- ARAGÃO, Maria Alexandra de Sousa, “Direito Comunitário do Ambiente”;

- CANOTILHO, Gomes (coordenação), “Introdução ao Direito do Ambiente”;

- GOMES, Carla Amado, “Introdução ao Direito do Ambiente”, 2012, AAFDL;

- KISS, Alexandre, “Direito Internacional do Ambiente”;

- ROCHA, Mário de Melo, “Direito Internacional e Direito Europeu e o Direito do Ambiente”;

- SILVA, Vasco Pereira da, “Verde Cor de Direito - Lições de Direito do Ambiente”, 2002, Almedina

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Nota: Escrito ao abrigo do novo Acordo Ortográfico




Rodrigo Manuel Figueiredo Rocha
Nº 18386







[1] No entender do Professor Vasco Pereira da Silva as normas comunitárias não são internas pois não são exatamente iguais às leis produzidas pelo Estado Português mas é uma realidade comum à dimensão interna. Não será, assim, uma realidade de direito internacional.
[2] Tratado de Roma de 1957
[3] Questão muito debatida na doutrina é a de existir ou não, efetivamente, um Direito Fundamental do Ambiente
[4] Na visão do Professor Vasco Pereira da Silva a lei que está em vigor, praticamente não é aplicável, ainda que continue em vigor. Revela ainda o Professor que houve recentemente uma tentativa de fazer uma nova lei de bases do ambiente, tendo o Governo apresentado um projeto que, diferentemente do outro, não era programático. No entanto, informa o Professor que tanto quanto sabe a proposta está “morta” na Assembleia da República (após aprovação por todos os partidos na generalidade passou mais de um ano e nunca houve discussão na especialidade).
[5] Considerar estes como fontes «decorre da ideia de que a Administração, na sua tarefa da satisfação das necessidades coletivas, ao interpretar e aplicar normas jurídicas, também desempenha uma função de “criação do direito do caso concreto”».
[6] Da autoria do Professor Vasco Pereira da Silva
[7] Posição transmitida pelo Professor na Aula Teórica de Direito do Ambiente de 27/02/2014
[8] Posição transmitida pelo Professor na Aula Teórica de Direito do Ambiente de 27/02/2014

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