A teorização das
relações jurídicas multilaterais1,(adotada
inicialmente pela doutrina e jurisprudência alemãs) sofreu uma
evolução substancial com o Direito do Ambiente, uma vez que neste
ramo do Direito há atos administrativos que se relacionam, não
apenas com uma esfera jurídica, atingindo reflexamente a esfera
jurídica de terceiros, tendo sido no Estado de Direito pós-social
que se intensificou esta conflitualidade de interesses divergentes,
considerados como “novos direitos subjetivos em matéria de
ambiente (…) em que não é criada apenas uma relação
unidimensional entre os destinatários do acto e o Estado, mas sim
uma relação triangular, que tem de um lado o Estado, e que, do lado
dos cidadãos, abrange dois afetados – um que é beneficiado pelo
Estado e outro que é prejudicado de forma correspondente a esse
benefício” 2,
isto é, “relações que revelem uma pluralidade subjetiva a par de
uma pluralidade material ou substancial, o que significa que à
multiplicidade de sujeitos deve corresponder uma diversidade de
direitos ou interesses em jogo”3.
Estas
relações jurídicas multilaterais consubstanciam uma colisão de
direitos fundamentais, em que ambos os direitos fundamentais
invocados propõem a resolução do caso em sentido contrário ao
outro direito fundamental. Um dos pressupostos da existência das
relações jurídicas multilaterais é a não possibilidade de
sobrevivência completa dos direitos fundamentais de ambos os
particulares no caso concreto, sendo necessário que haja restrição
de um ou ambos. Podemos estar perante uma colisão entre vários
direitos fundamentais distintos, como o caso em que um particular é
titular do direito fundamental ao ambiente (art. 66.º da
Constituição da República Portuguesa, doravante CRP), e o
particular oposto titular do direito de livre iniciativa económica
(artigo 61.º CRP), a título de exemplo.
Parece-nos
de adotar o entendimento sufragado por Francisco Paes Marques, ao
afirmar que “Nesta medida, tem o legislador ordinário a obrigação
de delimitar os diversos direitos e liberdades conflituantes,
impendendo sobre ele um dever de alcançar uma concordância prática
entre os direitos fundamentais em colisão, segundo um critério de
proporcionalidade”4acrescentando
que “compete, num primeiro nível, uma tarefa que podemos
qualificar de ponderação primária, através da qual este tem de
identificar os bens, valores e interesses em conflitos que devem ser
considerados relevantes (…), o legislador tem ainda, num segundo
nível, que podemos qualificar de tarefa de ponderação secundária,
de proceder à atribuição de uma importância, ou de um peso
específico, a cada um dos bens jurídicos em causa”5,
sendo o objetivo primordial proceder ao menor dano possível em ambos
os direitos, bem como uma possível harmonização, tendo em conta o
carácter principiológico dos direitos fundamentais, na medida em
que são mandatos de optimização, impondo a maior aplicação
possível no caso concreto.
Será
pertinente perguntar se poderemos estar perante uma aniquilação
completa de um direito fundamental, como é o caso de o particular
que vê o seu direito fundamental (o direito à livre iniciativa
económica, a título de exemplo), ceder completamente face ao
direito ambiental de terceiros, não só pelo que decorre do dever de
concordância prática, e pelo caráter principiológico dos direitos
fundamentais, como já foi referido supra,
como pelo que decorre do artigo 18.º n.º3 da CRP e respetiva
consagração de uma garantia do conteúdo essencial do direito
fundamental restringido.
Como
afirma o Professor Jorge Reis Novais, “pese embora o sucesso da
fórmula e a sua invocação frequente, a garantia do conteúdo
essencial não desempenha, hoje, qualquer papel autónomo
significativo nem desenvolve qualquer efeito jurídico efectivo
enquanto limite aos limites dos direitos fundamentais”6,
o que nos leva a concluir que possa ocorrer uma cedência total de um
direito fundamental, tendo como fim justificativo o bem jurídico
ambiente, quando o circunstancialismo do caso concreto imponha que
assim o seja e quando não haja possibilidade de harmonização entre
ambos os direitos.
No
tocante aos atos administrativos autorizativos, cumpre esclarecer, de
acordo com as palavras de FRACCHIA7,
que a autorização administrativa, “vista enquanto meio de
intervenção administrativa sobre a atividade económica dos
privados, tem revelado as diferentes conceções da relação entre
liberdade dos privados e autoridade administrativa, entre iniciativa
económica e condicionamento público”, e as suas consequências
manifestam-se sobretudo ao nível das relações de vizinhança,
nomeadamente pela progressiva intervenção do direito administrativo
na regulação entre os privados.
A
doutrina tem assumido posições diversas quanto à possibilidade de
um efeito conformador de atos administrativos autorizativos. Desde
logo Fausto de Quadros defende que “tendo sido a atividade sempre
licenciada, a contaminação mais não seria do que a decorrência
necessária e natural do exercício de direitos emergentes de um
título legítimo.”8
Advogando a posição contrária, cite-se Menezes Leitão “a ação
ao abrigo do artigo 1346º CC nunca será impossibilitada pela
existência de uma autorização pública”.9
Consideramos que os atos
autorizativos de uma entidade administrativa e lesivos de direitos de
terceiros, isto é, os atos que produzem “efeitos reflexos que se
vão repercutir em esferas jurídicas diversas das dos seus
destinatários”10,
são lícitos, no âmbito das relações jurídicas civis, devido ao
seu efeito conformador ou legalizador1112,
por questões de unidade da ordem jurídica, evitando contradições
normativas, uma vez que “dificilmente faz sentido que uma dada
conduta seja considerada válida em sede jurídico-administrativa e
já não o seja aos olhos do direito civil (…) De facto, custa
aceitar um tal desfasamento (…) pela necessidade de evitar
contradições normativas e de proteger a confiança dos
particulares, o que nos leva a rejeitar aqueles que defendem a
«teoria das ilicitudes diferenciadas».”13.
As
questões primordiais às quais agora se pretende dar resposta, são
as de saber: i) quais os direitos dos terceiros, que possam vir a ser
lesados antes de as autoridades praticarem o ato jurídico-público
(ato autorizativo) e ii) quais os direitos dos terceiros efetivamente
lesados, após emissão de ato administrativo autorizativo, lesivo de
direitos de terceiros. 14
Assim, e dando resposta à
primeira das questões enunciadas supra, assegura-se, de
acordo com o artigo 52º do Código de Procedimento Administrativo, o
direito de participação no procedimento administrativo conducente à
emanação de atos permissivos com efeitos preclusivos, direito este
que se reflete na possibilidade de apresentação de reclamações
relativas à instalação ou licenciamento de atividade industrial,
que possa acarretar prejuízos para terceiros (vide artigo 7.º
e 12.º/2 do Decreto-Lei 109/91), permitindo ao particular suscetível
de vir a ser lesado, a defesa dos seus direitos na “antecâmara da
decisão”, como refere o Professor Gomes Canotilho, e ainda Vasco
Pereira da Silva, que permite “o acesso de todos aqueles que podem
alegar a lesão dos seus direitos fundados na constituição, de
forma a permitir que exista coincidência dos intervenientes no
procedimento com os sujeitos das relações jurídicas
multilaterais”15.
Questão diferente, e
igualmente pertinente, é a de saber quais os direitos dos
particulares efetivamente lesados por uma atividade privada ingerente
na sua esfera jurídica, após emissão de ato autorizativo
constitutivo de direitos pela Administração Pública, que pela sua
intensa conformação dos direitos de terceiros, conduz à preclusão
de ações de defesa. Para o Professor Vasco Pereira da Silva “se
um particular lesado não participar no procedimento administrativo,
ou se o procedimento tiver sido conduzido de forma defeituosa, ele
pode vir a impugnar a autorização, alegando a violação de
direitos fundamentais”.16
Parece-nos, na esteira do
que defende o Professor Gomes Canotilho, que nas situações em que a
atribuição de efeitos legalizadores ao ato autorizativo precluda a
posterior participação/reclamação de terceiros, “não significa
necessariamente também a preclusão do direito de compensação de
sacrifícios por parte dos lesados. Ato autorizativo preclusivo não
significa ato impositivo de sacrifício sem autorização”17.
Como tal, existirá
responsabilidade civil por danos ambientais18,
uma vez que “o eventual ato autorizativo exclui a «ilicitude»,
mas não compensa o sacrifício de direitos fundamentais dos
particulares” e “não poderá afastar a compensação de danos
causados”19,
compensação essa que estará a cargo do particular lesante, e não
do Estado permissor das atividades lesivas, sob pena da subversão do
princípio do poluidor pagador em princípio do “Estado pagador de
poluições autorizadas”2021.
1.
cfr. SILVA,
Vasco Pereira da, Verde
Cor de Direito,
2002, pp. 107, considerando que as expressões
“poligonais” e “multipolares” são desadequadas, por se
referirem a uma representação fechada, em vez de aberta, como é a
realidade ambiental, adotando a expressão “multilaterais” uma
vez que abarca ligações entre todos e quaisquer sujeitos, uns em
relação aos outros)
2.
cfr. SILVA, Vasco Pereira da, Em
busca do Acto Administrativo Perdido,
Coimbra, Livraria Almedina, 1998, pp. 275.
3.
cfr. FREITAS, Dinamene Faria de, As
relações administrativas multilaterais – Reflexos da figura no
novo regime do Contencioso Administrativo,
Seminário de Direito Administrativo, 2003, pp. 25, apud. DIAS, José
Eduardo Figueiredo, Direito
Constitucional e Administrativo do Ambiente,
Cadernos CEDOUA, Coimbra, 2002, pp. 43-44)
4.
cfr. MARQUES, Francisco Paes, As
Relações Jurídicas Administrativas Multipolares,
Coimbra, Almedina, 2011, pp. 238.
5.
cfr. MARQUES, Francisco Paes, ibidem, p.239)
6.
cfr. NOVAIS, Jorge Reis, Os
Direitos Fundamentais nas Relações Jurídicas entre particulares,
Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria”,
Lisboa: Almedina, 2006, pp.786.
7.
Apud. CARMONA,
Mafalda, O
acto administrativo com efeito conformador de relações jurídicas
entre particulares,
[Dissertação de mestrado em Ciências Jurídico-Políticas],
Lisboa: Faculdade de Direito de Lisboa, 2002, pp. 27
8.
cfr. QUADROS, Fausto de, Direito das expropriações, direito do
urbanismo, direito do ambiente: algumas questões fundamentais,
pp. 160. Apud. CARMONA,
ibidem, pp. 104.
9.
cfr. LEITÃO, Luís de Menezes, Instrumentos de direito privado
para proteção do ambiente, pp. 47. Apud. CARMONA,
ibidem,
pp. 104.
10.
cfr. FREITAS, Dinamene, op.cit, pp. 29)
11.
para mais desenvolvimentos sobre os efeitos irradiantes dos atos
legalizadores para o direito privado, vide CANOTILHO, José Gomes,
Actos Autorizativos Jurídico-Públicos e Responsabilidade por Danos
Ambientais, in
BFDUC,
vol.
LXIX, 1993, pp.16-29)
12.
De notar que nem todos os atos autorizativos têm efeitos
conformadores ou legalizadores, mas tão só os que consubstanciem
procedimentos planificatórios, concessórios e autorizativos
constitutivos de direitos. Cfr. CANOTILHO,
José Gomes, ibidem,
passim.
13.
Cfr. CALVÃO,
Filipa Urbano, Direito ao Ambiente e Tutela Processual das Relações
de Vizinhança,
in Estudos de Direito do Ambiente,
Porto:
UCP, 2003, pp. 224.
14.
para mais desenvolvimentos sobre os terceiros titulares de posições
jurídicas subjetivas relevantes, tema que não será aqui
desenvolvido, vide
FREITAS, Dinamene, op.cit,
pp. 29-33, idem
JORDÃO, Teresa, A
igualdade das partes no contencioso administrativo (das relações
jurídicas bilaterais às jurídicas multilaterais),
Relatório de Mestrado – Seminário de Contencioso Administrativo,
Faculdade de Direito de Lisboa, Lisboa, 2005, pp. 41 e ss.)
15.
cfr. SILVA, Vasco Pereira da, Em
busca do Acto Administrativo Perdido,
Coimbra, Livraria Almedina, 1998, pp.280
16.
cfr. SILVA, Vasco Pereira da, ibidem, pp.280
17.
cfr. CANOTILHO, José Gomes, op.cit,
pp. 34
18.
para uma melhor classificação conceitual vide ibidem pp.
13-15
19.
CANOTILHO, Ibidem,
pp. 31.
20.
para mais desenvolvimentos, CANOTILHO,
Ibidem,
pp. 34 e ss.
21.
Cfr. CALVÃO,
Filipa Urbano, op.
cit,
pp. 228 - admite a responsabilidade da entidade autorizante
(Estado), embora a título subsidiário.
Referências
Bibliográficas
(de acordo com a norma
portuguesa NP-405)
- CALVÃO, Filipa Urbano, Direito ao Ambiente e Tutela Processual das Relações de Vizinhança, in Estudos de Direito do Ambiente, Porto: UCP, 2003, pp. 193-234;
- CANOTILHO, J.J. Gomes, Actos Autorizativos Jurídico-Públicos e Responsabilidade por Danos Ambientais, in BFDUC, vol. LXIX, 1993, pp. 1-69;
- CANOTILHO, J.J. Gomes, Relações Jurídicas Poligonais, Ponderação Ecológica de Bens e Controlo Judicial Preventivo, in RJUA, n.º 1, 1994, pp. 55-66;
- CARMONA, Mafalda, Relações Jurídicas Poligonais, participação de terceiros e caso julgado na anulação de actos administrativos, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Sérvulo Correia, Coimbra: Coimbra Editora, vol. II, 2010, pp. 695-757;
- CARMONA, Mafalda, O acto administrativo com efeito conformador de relações jurídicas entre particulares, [Dissertação de mestrado em Ciências Jurídico-Políticas], Lisboa: Faculdade de Direito de Lisboa, 2002, pp. 26-34, 104-110, 297-300.
- FREITAS, Dinamene Faria de, As relações administrativas multilaterais – Reflexos da figura no novo regime do Contencioso Administrativo, Seminário de Direito Administrativo, Lisboa: Faculdade de Direito de Lisboa, 2003, pp.23-33.
- MACHETE, Rui Chancerelle de, A Tutela Administrativa e Judicial dos Direitos nas Relações Poligonais não reguladas normativamente, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge Miranda, Coimbra: Coimbra Editora, vol. IV, 2012, pp. 819-831.
- MARQUES, Francisco Paes, As Relações Jurídicas Administrativas Multipolares, Coimbra: Almedina, 2011, pp. 234 e ss.
- NOVAIS, Jorge Reis, Os Direitos Fundamentais nas Relações Jurídicas entre particulares, Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria, Lisboa: Almedina, 2006. passim.
- SILVA, Vasco Pereira da, Verde Cor de Direito, 2002, pp. 106-107
- SILVA, Vasco Pereira da, Em busca do Acto Administrativo Perdido, Coimbra: Livraria Almedina, 1998, pp. 273-281.
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