12 de abril de 2014

Atos administrativos autorizativos: breves notas sobre as relações jurídicas multilaterais


A teorização das relações jurídicas multilaterais1,(adotada inicialmente pela doutrina e jurisprudência alemãs) sofreu uma evolução substancial com o Direito do Ambiente, uma vez que neste ramo do Direito há atos administrativos que se relacionam, não apenas com uma esfera jurídica, atingindo reflexamente a esfera jurídica de terceiros, tendo sido no Estado de Direito pós-social que se intensificou esta conflitualidade de interesses divergentes, considerados como “novos direitos subjetivos em matéria de ambiente (…) em que não é criada apenas uma relação unidimensional entre os destinatários do acto e o Estado, mas sim uma relação triangular, que tem de um lado o Estado, e que, do lado dos cidadãos, abrange dois afetados – um que é beneficiado pelo Estado e outro que é prejudicado de forma correspondente a esse benefício” 2, isto é, “relações que revelem uma pluralidade subjetiva a par de uma pluralidade material ou substancial, o que significa que à multiplicidade de sujeitos deve corresponder uma diversidade de direitos ou interesses em jogo”3.
Estas relações jurídicas multilaterais consubstanciam uma colisão de direitos fundamentais, em que ambos os direitos fundamentais invocados propõem a resolução do caso em sentido contrário ao outro direito fundamental. Um dos pressupostos da existência das relações jurídicas multilaterais é a não possibilidade de sobrevivência completa dos direitos fundamentais de ambos os particulares no caso concreto, sendo necessário que haja restrição de um ou ambos. Podemos estar perante uma colisão entre vários direitos fundamentais distintos, como o caso em que um particular é titular do direito fundamental ao ambiente (art. 66.º da Constituição da República Portuguesa, doravante CRP), e o particular oposto titular do direito de livre iniciativa económica (artigo 61.º CRP), a título de exemplo.
Parece-nos de adotar o entendimento sufragado por Francisco Paes Marques, ao afirmar que “Nesta medida, tem o legislador ordinário a obrigação de delimitar os diversos direitos e liberdades conflituantes, impendendo sobre ele um dever de alcançar uma concordância prática entre os direitos fundamentais em colisão, segundo um critério de proporcionalidade”4acrescentando que “compete, num primeiro nível, uma tarefa que podemos qualificar de ponderação primária, através da qual este tem de identificar os bens, valores e interesses em conflitos que devem ser considerados relevantes (…), o legislador tem ainda, num segundo nível, que podemos qualificar de tarefa de ponderação secundária, de proceder à atribuição de uma importância, ou de um peso específico, a cada um dos bens jurídicos em causa”5, sendo o objetivo primordial proceder ao menor dano possível em ambos os direitos, bem como uma possível harmonização, tendo em conta o carácter principiológico dos direitos fundamentais, na medida em que são mandatos de optimização, impondo a maior aplicação possível no caso concreto.
Será pertinente perguntar se poderemos estar perante uma aniquilação completa de um direito fundamental, como é o caso de o particular que vê o seu direito fundamental (o direito à livre iniciativa económica, a título de exemplo), ceder completamente face ao direito ambiental de terceiros, não só pelo que decorre do dever de concordância prática, e pelo caráter principiológico dos direitos fundamentais, como já foi referido supra, como pelo que decorre do artigo 18.º n.º3 da CRP e respetiva consagração de uma garantia do conteúdo essencial do direito fundamental restringido.
Como afirma o Professor Jorge Reis Novais, “pese embora o sucesso da fórmula e a sua invocação frequente, a garantia do conteúdo essencial não desempenha, hoje, qualquer papel autónomo significativo nem desenvolve qualquer efeito jurídico efectivo enquanto limite aos limites dos direitos fundamentais”6, o que nos leva a concluir que possa ocorrer uma cedência total de um direito fundamental, tendo como fim justificativo o bem jurídico ambiente, quando o circunstancialismo do caso concreto imponha que assim o seja e quando não haja possibilidade de harmonização entre ambos os direitos.
No tocante aos atos administrativos autorizativos, cumpre esclarecer, de acordo com as palavras de FRACCHIA7, que a autorização administrativa, “vista enquanto meio de intervenção administrativa sobre a atividade económica dos privados, tem revelado as diferentes conceções da relação entre liberdade dos privados e autoridade administrativa, entre iniciativa económica e condicionamento público”, e as suas consequências manifestam-se sobretudo ao nível das relações de vizinhança, nomeadamente pela progressiva intervenção do direito administrativo na regulação entre os privados.
A doutrina tem assumido posições diversas quanto à possibilidade de um efeito conformador de atos administrativos autorizativos. Desde logo Fausto de Quadros defende que “tendo sido a atividade sempre licenciada, a contaminação mais não seria do que a decorrência necessária e natural do exercício de direitos emergentes de um título legítimo.”8 Advogando a posição contrária, cite-se Menezes Leitão “a ação ao abrigo do artigo 1346º CC nunca será impossibilitada pela existência de uma autorização pública”.9
Consideramos que os atos autorizativos de uma entidade administrativa e lesivos de direitos de terceiros, isto é, os atos que produzem “efeitos reflexos que se vão repercutir em esferas jurídicas diversas das dos seus destinatários”10, são lícitos, no âmbito das relações jurídicas civis, devido ao seu efeito conformador ou legalizador1112, por questões de unidade da ordem jurídica, evitando contradições normativas, uma vez que “dificilmente faz sentido que uma dada conduta seja considerada válida em sede jurídico-administrativa e já não o seja aos olhos do direito civil (…) De facto, custa aceitar um tal desfasamento (…) pela necessidade de evitar contradições normativas e de proteger a confiança dos particulares, o que nos leva a rejeitar aqueles que defendem a «teoria das ilicitudes diferenciadas».”13.
As questões primordiais às quais agora se pretende dar resposta, são as de saber: i) quais os direitos dos terceiros, que possam vir a ser lesados antes de as autoridades praticarem o ato jurídico-público (ato autorizativo) e ii) quais os direitos dos terceiros efetivamente lesados, após emissão de ato administrativo autorizativo, lesivo de direitos de terceiros. 14
Assim, e dando resposta à primeira das questões enunciadas supra, assegura-se, de acordo com o artigo 52º do Código de Procedimento Administrativo, o direito de participação no procedimento administrativo conducente à emanação de atos permissivos com efeitos preclusivos, direito este que se reflete na possibilidade de apresentação de reclamações relativas à instalação ou licenciamento de atividade industrial, que possa acarretar prejuízos para terceiros (vide artigo 7.º e 12.º/2 do Decreto-Lei 109/91), permitindo ao particular suscetível de vir a ser lesado, a defesa dos seus direitos na “antecâmara da decisão”, como refere o Professor Gomes Canotilho, e ainda Vasco Pereira da Silva, que permite “o acesso de todos aqueles que podem alegar a lesão dos seus direitos fundados na constituição, de forma a permitir que exista coincidência dos intervenientes no procedimento com os sujeitos das relações jurídicas multilaterais”15.
Questão diferente, e igualmente pertinente, é a de saber quais os direitos dos particulares efetivamente lesados por uma atividade privada ingerente na sua esfera jurídica, após emissão de ato autorizativo constitutivo de direitos pela Administração Pública, que pela sua intensa conformação dos direitos de terceiros, conduz à preclusão de ações de defesa. Para o Professor Vasco Pereira da Silva “se um particular lesado não participar no procedimento administrativo, ou se o procedimento tiver sido conduzido de forma defeituosa, ele pode vir a impugnar a autorização, alegando a violação de direitos fundamentais”.16
Parece-nos, na esteira do que defende o Professor Gomes Canotilho, que nas situações em que a atribuição de efeitos legalizadores ao ato autorizativo precluda a posterior participação/reclamação de terceiros, “não significa necessariamente também a preclusão do direito de compensação de sacrifícios por parte dos lesados. Ato autorizativo preclusivo não significa ato impositivo de sacrifício sem autorização”17.
Como tal, existirá responsabilidade civil por danos ambientais18, uma vez que “o eventual ato autorizativo exclui a «ilicitude», mas não compensa o sacrifício de direitos fundamentais dos particulares” e “não poderá afastar a compensação de danos causados”19, compensação essa que estará a cargo do particular lesante, e não do Estado permissor das atividades lesivas, sob pena da subversão do princípio do poluidor pagador em princípio do “Estado pagador de poluições autorizadas”2021.



1. cfr. SILVA, Vasco Pereira da, Verde Cor de Direito, 2002, pp. 107, considerando que as expressões “poligonais” e “multipolares” são desadequadas, por se referirem a uma representação fechada, em vez de aberta, como é a realidade ambiental, adotando a expressão “multilaterais” uma vez que abarca ligações entre todos e quaisquer sujeitos, uns em relação aos outros)
2. cfr. SILVA, Vasco Pereira da, Em busca do Acto Administrativo Perdido, Coimbra, Livraria Almedina, 1998, pp. 275.
3. cfr. FREITAS, Dinamene Faria de, As relações administrativas multilaterais – Reflexos da figura no novo regime do Contencioso Administrativo, Seminário de Direito Administrativo, 2003, pp. 25, apud. DIAS, José Eduardo Figueiredo, Direito Constitucional e Administrativo do Ambiente, Cadernos CEDOUA, Coimbra, 2002, pp. 43-44)
4. cfr. MARQUES, Francisco Paes, As Relações Jurídicas Administrativas Multipolares, Coimbra, Almedina, 2011, pp. 238.
5. cfr. MARQUES, Francisco Paes, ibidem, p.239)
6. cfr. NOVAIS, Jorge Reis, Os Direitos Fundamentais nas Relações Jurídicas entre particulares, Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria”, Lisboa: Almedina, 2006, pp.786.
7. Apud. CARMONA, Mafalda, O acto administrativo com efeito conformador de relações jurídicas entre particulares, [Dissertação de mestrado em Ciências Jurídico-Políticas], Lisboa: Faculdade de Direito de Lisboa, 2002, pp. 27
8. cfr. QUADROS, Fausto de, Direito das expropriações, direito do urbanismo, direito do ambiente: algumas questões fundamentais, pp. 160. Apud. CARMONA, ibidem, pp. 104.
9. cfr. LEITÃO, Luís de Menezes, Instrumentos de direito privado para proteção do ambiente, pp. 47. Apud. CARMONA, ibidem, pp. 104.
10. cfr. FREITAS, Dinamene, op.cit, pp. 29)
11. para mais desenvolvimentos sobre os efeitos irradiantes dos atos legalizadores para o direito privado, vide CANOTILHO, José Gomes, Actos Autorizativos Jurídico-Públicos e Responsabilidade por Danos Ambientais, in BFDUC, vol. LXIX, 1993, pp.16-29)
12. De notar que nem todos os atos autorizativos têm efeitos conformadores ou legalizadores, mas tão só os que consubstanciem procedimentos planificatórios, concessórios e autorizativos constitutivos de direitos. Cfr. CANOTILHO, José Gomes, ibidem, passim.
13. Cfr. CALVÃO, Filipa Urbano, Direito ao Ambiente e Tutela Processual das Relações de Vizinhança, in Estudos de Direito do Ambiente, Porto: UCP, 2003, pp. 224.
14. para mais desenvolvimentos sobre os terceiros titulares de posições jurídicas subjetivas relevantes, tema que não será aqui desenvolvido, vide FREITAS, Dinamene, op.cit, pp. 29-33, idem JORDÃO, Teresa, A igualdade das partes no contencioso administrativo (das relações jurídicas bilaterais às jurídicas multilaterais), Relatório de Mestrado – Seminário de Contencioso Administrativo, Faculdade de Direito de Lisboa, Lisboa, 2005, pp. 41 e ss.)
15. cfr. SILVA, Vasco Pereira da, Em busca do Acto Administrativo Perdido, Coimbra, Livraria Almedina, 1998, pp.280
16. cfr. SILVA, Vasco Pereira da, ibidem, pp.280
17. cfr. CANOTILHO, José Gomes, op.cit, pp. 34
18. para uma melhor classificação conceitual vide ibidem pp. 13-15
19. CANOTILHO, Ibidem, pp. 31.
20. para mais desenvolvimentos, CANOTILHO, Ibidem, pp. 34 e ss.
21. Cfr. CALVÃO, Filipa Urbano, op. cit, pp. 228 - admite a responsabilidade da entidade autorizante (Estado), embora a título subsidiário.



Referências Bibliográficas
(de acordo com a norma portuguesa NP-405)

  1. CALVÃO, Filipa Urbano, Direito ao Ambiente e Tutela Processual das Relações de Vizinhança, in Estudos de Direito do Ambiente, Porto: UCP, 2003, pp. 193-234;
  2. CANOTILHO, J.J. Gomes, Actos Autorizativos Jurídico-Públicos e Responsabilidade por Danos Ambientais, in BFDUC, vol. LXIX, 1993, pp. 1-69;
  3. CANOTILHO, J.J. Gomes, Relações Jurídicas Poligonais, Ponderação Ecológica de Bens e Controlo Judicial Preventivo, in RJUA, n.º 1, 1994, pp. 55-66;
  1. CARMONA, Mafalda, Relações Jurídicas Poligonais, participação de terceiros e caso julgado na anulação de actos administrativos, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Sérvulo Correia, Coimbra: Coimbra Editora, vol. II, 2010, pp. 695-757;
  2. CARMONA, Mafalda, O acto administrativo com efeito conformador de relações jurídicas entre particulares, [Dissertação de mestrado em Ciências Jurídico-Políticas], Lisboa: Faculdade de Direito de Lisboa, 2002, pp. 26-34, 104-110, 297-300.
  3. FREITAS, Dinamene Faria de, As relações administrativas multilaterais – Reflexos da figura no novo regime do Contencioso Administrativo, Seminário de Direito Administrativo, Lisboa: Faculdade de Direito de Lisboa, 2003, pp.23-33.
  4. MACHETE, Rui Chancerelle de, A Tutela Administrativa e Judicial dos Direitos nas Relações Poligonais não reguladas normativamente, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge Miranda, Coimbra: Coimbra Editora, vol. IV, 2012, pp. 819-831.
  5. MARQUES, Francisco Paes, As Relações Jurídicas Administrativas Multipolares, Coimbra: Almedina, 2011, pp. 234 e ss.
  6. NOVAIS, Jorge Reis, Os Direitos Fundamentais nas Relações Jurídicas entre particulares, Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria, Lisboa: Almedina, 2006. passim.
  7. SILVA, Vasco Pereira da, Verde Cor de Direito, 2002, pp. 106-107
  8. SILVA, Vasco Pereira da, Em busca do Acto Administrativo Perdido, Coimbra: Livraria Almedina, 1998, pp. 273-281.

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