O
procedimento de Avaliação de Impacto Ambiental (AIA), regulado actualmente pelo DL n.º 151-B/2013, de 31 de Outubro,
conforme refere Carla Amado Gomes, assume um papel de extrema importância no
Direito do Ambiente, a ponto de ser considerado, por várias Constituições, como
imprescindível para a tutela do ambiente e de ter sido elevado a princípio de
Direito Internacional geral, tanto pelo Tribunal Internacional de Justiça como
pelo Tribunal Internacional para o Direito do Mar, visão esta seguida em
Portugal por autores como o Mário de Melo Rocha.
Neste
contexto, a Declaração de Impacto Ambiental (DIA), que surge no final deste
procedimento e é o seu acto central, vai igualmente assumir uma grande
importância, por tudo aquilo que implica. Com efeito, se é certo que uma DIA em
sentido favorável, ou favorável condicionada, por si só, não é condição
suficiente para que determinado projecto venha a ser executado, é condição
necessária para o mesmo, não havendo lugar a licenciamento ou autorização de
projectos se a DIA for desfavorável (sem prejuízo, é certo, do caso de deferimento
tácito, previsto no Art.19.º/2 do D.L). Por outro lado, o conteúdo da DIA,
nomeadamente condições nela contidas devem constar do licenciamento ou
autorização do projecto, conforme refere o Art.22.º/2 do D.L, enquanto o nº3
prevê a nulidade de todos os actos praticados em desrespeito das exigências
referidas acima.
Feitas
estas considerações introdutórias, resulta de forma clara que estamos perante um
campo fértil para discussões. A que me traz aqui hoje, neste belo dia de
Primavera, prende-se com a questão da competência para a sua emissão.
Se
é certo que o actual regime prevê, como analisarei infra, soluções altamente criticadas por alguma doutrina, um estudo
mais aprofundado mostra que este sempre foi um tema que levantou algumas
questões e inquietações. Proponho então, uma pequena viagem na máquina do
tempo, para melhor compreendermos a matéria em causa.
A
nossa primeira paragem dá-se no final da década de 90. Surgira recentemente a
Directiva 97/11/CE, que o Estado Português deveria transpor até Março de 99,
pelo que se vaticinavam algumas alterações.
Nesta
altura, não existia ainda o conceito de DIA, como hoje a conhecemos. Existia,
sim, a decisão de AIA, que cabia ao Ministério do Ambiente. Até aqui, nos termos
do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 186/90 (com a redacção do Decreto-Lei n.º
278/97) estávamos perante um parecer que, se bem que obrigatório, se
apresentava como não vinculativo, tendo em conta que o Art.6.º deste diploma
previa que “A entidade competente para a aprovação do projecto deve ter em
consideração, no respectivo licenciamento ou aprovação, o parecer da AIA (…) e,
no caso da sua não adopção, incorporar as razões de facto e de direito que para
tal foram determinantes.” Umas das alterações previsíveis era precisamente que
este parecer se tornasse vinculativo.
Mas
voltando à questão da competência, é de sublinhar, conforme notam Alexandra Aragão,
Figueiredo Dias e Maria Ana Barradas, que este regime era criticado por
implicar uma excessiva centralização de competências e pela circunstância de as
comissões de avaliação serem compostas por técnicos pertencentes aos serviços do
Ministério, o que vinha onerando o procedimento em termos da sua celeridade e
eficácia. Por estes motivos, previam os Autores que o novo regime viria
estabelecer centros de decisão decentralizados, bem como garantir a independência
entre que realizaria as tarefas técnicas de avaliação e quem tomaria a decisão
final.
É
ainda de notar que, sobre o primeiro ponto, consideravam que, tendo em conta o
princípio da organização administrativa de que as responsabilidades públicas
coubessem prioritariamente a entidades mais próximas da população, para uma
maior eficácia. Desta forma, defendiam que, se a entidade licenciadora fosse um
organismo da administração estadual periférica ou da administração local, a
autoridade da AIA deveria ser a Direcção Regional do Ambiente com jurisdição sobre
a área onde o projecto se iria localizar. Se o projecto se localizasse na área
de jurisdição de duas ou mais Direcções Regionais do Ambiente, a autoridade da
AIA seria a Direcção Regional do Ambiente com maior área abrangida, podendo a
outra ou outras Direcções Regionais participar nos trabalhos do “órgão
avaliador”. Esta reflexão era concluída com a ressalva de que esta
descentralização, embora bastante aconselhável, nunca deveria vir
desacompanhada do “reforço dos recursos humanos, técnicos e financeiros dos organismos
aos quais forem conferidas novas ou acrescidas competências”, sob pena de a
intervenção legislativa não conseguir atingir os benefícios pretendidos.
E
com isto, estamos prontos para avançar um pouco mais no tempo e perceber o que
efectivamente mudou com este novo regime, que acabou por vigorar durante mais
de uma década, até ser revogado pelo actual.
Estamos
agora no ano de 2000. Nova década, novo século e novas normas sobre o
procedimento de AIA, com o D.L nº 69/2000, de 3 de Maio.
Se
é certo que este regime trouxe vários aspectos positivos, entre os quais o
significativo reforço da força jurídica da decisão final do procedimento de AIA
(o conceito de DIA surgiu com este regime), em relação a vários outros
aspectos, são notórios os recuos em relação a soluções contidas na proposta de
regime de AIA que em 1999 tinha sido levada à discussão pelo Ministério do
Ambiente. Um desses aspectos foi precisamente o da competência decisória.
Com
efeito, contrariamente ao que era previsto e desejado pelos Autores acima
referidos, com o novo regime, a competência para a decisão final do
procedimento, agora DIA, manteve-se com o membro do Governo encarregue da área
do Ambiente, mais concretamente, o Ministro do Ambiente e do Ordenamento do Território,
por via do Art.18.º/1. Tendo posteriormente escrito sobre o tema, estes
lamentaram o facto de a intenção proclamada de estabelecer níveis decisórios desconcentrados no procedimento. Com efeito, e
como referem, “na proposta para discussão pública determinava-se que somente em
relação aos projectos constantes do Anexo I a decisão final de AIA caberia ao
Ministro do Ambiente, sendo que nos restantes casos seriam competentes o
Director-Geral do Ambiente ou o Director Regional do Ambiente, consoante a
Autoridade de AIA fosse a DGA ou uma DRA. Procurava-se, pelo menos em alguns
procedimentos, aproveitar as vantagens declaradamente reconhecidas à
desconcentração administrativa.”
Outro
Autor que encontra problemas no regime decisório é o Prof. Vasco Peeira da
Silva. Com efeito, o Autor não concorda com a complexidade da “cadeia” decisória,
que conta com a intervenção de três entidades diferentes: a Comissão de
Avaliação que, no prazo de 25 dias a contar da recepção do relatório de
consulta pública, e em face do conteúdo dos pareceres técnicos recebidos de
apreciação técnica do EIA, daquele relatório e de outros elementos de relevante
interesse, elabora e remete à AIA o parecer final do procedimento; a própria
AIA, que deverá remeter ao Ministro competente a proposta de DIA; e o Ministro
responsável pela área do Ambiente que, no espaço de 15 a contar da recepção
desta proposta, deve emitir a DIA.
Segundo
o Professor, existe uma diluição da competência por vários órgãos, naquilo que
considera um bom exemplo de “passar de culpas”, além de uma ausência de parâmetros
legais de decisão (isto sem prejuízo da regra da necessidade de fundamentação
das decisões da autoridade de AIA ou do Ministro, quando contrárias à proposta
da comissão, sob pena de invalidade).
Por
outro lado, e à semelhança do que haviam feito outros Autores, como Figueiredo
Dias, também o Prof. Vasco Pereira da Silva aponta neste sistema uma possível
tendência concentradora, que teria levado à criação da AIA. Esta, parecendo à
partida uma entidade autónoma, corresponderia, na realidade, a serviços do
Ministério, e não tinha competência decisória própria.
Em
conclusão, defendia como possíveis soluções para esta situação, e de forma a
tornar o sistema mais simples, as seguintes:
-
Ou se passava da proposta da Comissão de avaliação directamente para a decisão
do Ministro, dispensando-se a intervenção intermédia (e supérflua) da
autoridade da AIA,
-
Ou a autoridade da AIA, “fazendo jus ao
seu nome”, se tornava a entidade central do procedimento, sendo ela a
emitir a DIA, mediante delegação de competência decisória para o efeito,
delegada pelo Ministro, nos termos do Art.35.º e seguintes do CPA.
Em
relação a estes últimos aspectos, não posso deixa de concordar com o Professor.
Em
primeiro lugar, é certo que, por todas as implicações e condicionalismos que a
DIA traz consigo (e que já acima referi), e apesar de a defesa do Ambiente ter
a importância que lhe é reconhecida, para as entidades decisoras é sempre uma
posição algo desconfortável a de tomar uma decisão tão importante, seja em que sentido
for (e dar a cara por isso). A diluição de competência, que o Professor aponta,
seria efectivamente uma maneira de dividir as culpas entre as entidades
intervenientes, como que dizendo “Eu realmente decidi desta forma, mas x e y
também diziam que deveria ser assim.” Como refere o Professor, todos são
responsáveis, e ninguém é responsável. Mas penso que quando é atribuída uma
responsabilidade desta dimensão, a(s) entidade(s) em causa deve apenas
desempenhar o seu papel com o foco e, acima de tudo, a coragem que aquela
exige. Mais importante do que “parecer bem ou não parecer mal”, deveria ser o
efectivo cumprimento dos objectivos que norteiam o procedimento da AIA.
Em
segundo lugar, parecem-me também oportunas as críticas feitas ao carácter
concentrador deste sistema, pois que, a bem da agilização e desburocratização de
todo este procedimento, qualquer uma das soluções apresentadas pelo Professor
poderia ser acolhida, com efeitos benéficos.
Feita
a visita deste regime, cumpre-nos fazer a última viagem na nossa máquina do
tempo. Avancemos então treze Primaveras, até 2013, altura em que surge nova
alteração de regime, com o D.L nº 151-B/2013, de 31 de Outubro (pelo meio, ainda
houve alterações ao anterior regime, com o D.L nº 197/2005, mas estas não
incidiram de forma significativa sobre a matéria deste texto).
Tendo
os regimes anteriores, no que respeita à competência para emissão de DIA, sido
alvo de largas e, a meu ver, fundadas críticas, eis que surge nova oportunidade
de aperfeiçoar esta matéria.
Olhando
então para a lei, percebemos que se mantém a elaboração de parecer técnico
final de AIA pela Comissão de Avaliação, a remeter à autoridade de AIA,
conforme dispõe o Art.16.º/1 do D.L, dispondo o nº6 que a DIA é emitida pela
autoridade de AIA. À partida, parece ter sido adoptada a segunda solução
proposta pelo Prof. Vasco Pereira da Silva, na sua crítica feita ao anterior regime.
Contudo, logo a seguir, o nº7 estipula que, havendo fundamentos para a
autoridade de AIA julgar que se justifica a emissão de DIA desfavorável, deve
remeter a sua proposta para o membro do Governo responsável pela área do Ambiente.
O Art.19.º/1 vem depois confirmar que a DIA é emitida por uma destas entidades,
nos termos das disposições que acabei de referir.
Numa
evolução surpreendente, o sentido que previsivelmente tomará a DIA determinará
quem tem competência para a emitir. Mais, é o juízo de uma entidade (a
autoridade de AIA), que vai levar a que seja esta ou o Ministro a emitir a DIA,
resultando de forma clara da letra da lei, que a autoridade da AIA não tem
competência para emitir DIA’s desfavoráveis.
Esta
opção do legislador, pese embora o seu carácter recente, já foi alvo de alguma
crítica.
Nesse
sentido, cumpre desde já notar que, como refere Rui Lanceiro, sendo a proposta
de DIA remetida ao Ministro, o que ocorrerá apenas quando, segundo o juízo da
autoridade de AIA, esta deverá ser desfavorável, aquele membro do Governo não está
vinculado a essa apreciação, podendo perfeitamente emitir uma DIA favorável ou
favorável condicionada, sem prejuízo do dever agravado de justificação para o afastamento
daquele primeiro juízo, que daí advirá. Da lei não resulta o contrário, ao que
acresce o facto de o Ministro ser superior hierárquico da autoridade de AIA.
Para
o Autor, o grande problema que se coloca está ao nível do princípio da
legalidade administrativa, extraído dos Arts.2.º, 3.º/3 e 266.º/2 da CRP. “Este princípio tem, tradicionalmente, dois
fundamentos principais: o fundamento democrático (a administração deve estar
submetida ao poder legislativo, democraticamente legitimado); e o fundamento garantístico
(garantia de previsibilidade da actuação administrativa e possibilidade de
controlo judicial da actividade administrativa, nomeadamente a pedido dos
cidadãos lesados por essa actividade). Trata-se, no fundo, da garantia do
respeito pelo princípio do Estado de direito democrático.”
Do
princípio da legalidade retira o subprincípio da precedência da lei, segundo o
qual todos os actos da Administração deviam ter por base uma lei prévia, que
determine as atribuições e competências das entidades administrativas. Por outro
lado, a fixação legislativa da competência destes órgãos permite o seu controlo
judicial.
Ora,
neste regime, a alternância de competência para a emissão de DIA está
dependente não de uma lei, mas do juízo de um órgão, pelo que à partida existe
sempre um elevado grau de indeterminação, não sendo possível antecipar de forma
segura, logo de início, a quem pertencerá a competência, o que consubstancia uma
violação do princípio da legalidade, além do que dificulta o referido controlo
judicial.
O
Autor conclui assim que este regime é inconstitucional, por violação deste
princípio da legalidade da Administração, isto sem prejuízo de eventuais
questões passíveis de ser colocadas ao nível dos princípios da segurança e da
igualdade.
Outro
crítico deste regime é o Dr. Tiago Antunes, que considera a solução inaceitável.
Antes
de mais, pois coloca obstáculos extra à emissão de DIA’s desfavoráveis, na
medida em que estas têm de “subir” ao gabinete do Ministro para serem
despachadas, o que exige que a autoridade da AIA finalize a sua apreciação até
10 dias ante do prazo de decisão, de forma a respeitar o tempo de actuação do
Ministro, isto sob pena de já não ser possível emitir uma DIA desfavorável, mas
apenas condicionalmente favorável. O Autor considera inadmissível que a lei
estabeleça preferências apriorísticas por um determinado sentido de decisão, especialmente
quando a decisão “desfavorecida” é aquela que mais protege o Ambiente, pondo
fim ao projecto. Assim, considera estar em causa uma violação do principio da
prevenção.
Por
outro lado, critica também o facto de ser o sentido provável de uma decisão que
vai determinar a competência para a sua tomada. Desta forma, poderia estar em
causa o princípio da legalidade da competência, pois esta é manipulada
consoante as inclinações decisoras de uma entidade individual, sendo a
autoridade da AIA a decidir se intervém ou não.
Por
tudo isto, Tiago Antunes conclui que estamos perante uma verdadeira “aberração normativa, a qual deverá ser
corrigida o mais brevemente possível”.
Pela
minha parte, e como já acima referi, considero que o anterior regime poderia e
deveria receber uma alteração, a bem da celeridade e eficácia de todo o procedimento.
Com o regime actual já não é sempre necessário que a proposta de DIA chegue ao
nível ministerial. No entanto, mantém-se uma certa burocracia de processo no
caso de DIA’s potencialmente desfavoráveis, que não me parece justificável. Tal
como não me parece justificável o critério que o determina.
É
certo que uma decisão, quando tomada por um Ministro tem todo um outro peso. É certo
também que, em certos casos, pela particular importância ou sensibilidade da
matéria, talvez até seja necessário fazer o procedimento avançar mais um
degrau, antes de ser proferida uma decisão.
Nessa
medida, não me chocaria, até pelo contrário, me pareceria perfeitamente
justificável, que, regra geral, a decisão devesse caber à autoridade de AIA, por
todos os motivos já referidos, e deveria esta entidade ser competente para
emitir não apenas DIA’s favoráveis e favoráveis condicionadas, mas também
desfavoráveis. A eventual remissão da proposta de AIA parecer-me-ia
perfeitamente admissível, mas em casos expressamente determinados na lei, que
poderiam abranger certas matérias sobre as quais (como já referi, pela sua
importância, sensibilidade, etc.) só o Ministro devesse poder decidir ou até
mesmo casos de fundadas dúvidas da autoridade da AIA.
Em
suma, estabelecer-se um critério objectivo para determinar quando o
procedimento poderia ou não chegar ao Ministro competente, em vez de um
critério como o actual, que varia de situação para situação. Dessa forma,
estaria respeitado o princípio da legalidade.
Bibliografia
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Revisitando a avaliação de impacto ambiental
- ARAGÃO, Alexandra/DIAS, José Eduardo Figueiredo/BARRADAS, Maria Ana,
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- ARAGÃO, Alexandra/DIAS, José Eduardo Figueiredo/BARRADAS, Maria Ana, O
novo regime da AIA: a avaliação de previsíveis impactes
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- GOMES, Carla Amado,
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- LANCEIRO, Rui, A instrução do
procedimento de AIA – uma primeira análise do novo RJAIA in Revisitando a
avaliação de impacto ambiental
- PINA, Catarina Moreno, Os Regimes de Avaliação de
Impacte Ambiental e de Avaliação Ambiental Estratégica, Lisboa AAFDL, 2011
- SILVA, Vasco Pereira
da, Verde Cor de Direito – Lições de Direito do Ambiente, Coimbra, Almedina,
2002
Bruno Girão
Nº 20851
4º Ano, subturma 2