1 de junho de 2014

Constelação da avaliação ambiental: O Regime de Avaliação de Incidências Ambientais enquanto regime subsidiário

A Avaliação de Incidências Ambientais (AIncA) encontra-se regulada no Decreto-Lei n.º 140/99, de 24 de abril, alterado pelo Decreto-Lei n.º 49/2005, de 24 de fevereiro, dispondo o artigo 10.º/1 que "As ações, planos ou projetos não diretamente relacionados com a gestão de um Sítio da Lista Nacional de Sítios, de um Sítio de Interesse Comunitário (SIC), de uma Zona Especial de Conservação (ZEC) ou de uma Zona de Proteção Especial (ZPE), e não necessários para essa gestão mas suscetíveis de afetar essa zona de forma significativa, individualmente ou em conjugação com outras ações, planos ou projetos, devem ser objeto de Avaliação de Incidências Ambientais no que se refere aos objetivos de conservação da referida zona." consistindo na avaliação prévia das incidências ambientais das ações, planos ou projetos sobre uma dessas zonas.
Contudo “não é toda e qualquer atividade que afete um sitio da Rede Natura 2000 que deve ser sujeita a AincA, mas apenas aquelas que – numa apreciação necessariamente casuística e discricionária – o afetem ≪de forma significativa≫”, o que “introduz uma elevada dose de incerteza e subjetividade na determinação das atividades cujos efeitos sobre a biodiversidade devem ser objeto de uma avaliação prévia”1, sendo esta análise não apenas em função do plano, projeto ou ação individualmente considerados, mas também das consequências que estes possam vir a ter, em conjugação com outros planos, projetos ou ações, o que “vem aumentar ainda mais o grau de indeterminação no apuramento das atividades que – em atenção ao imperativo de conservação da natureza – devem ser submetidas a uma análise das respetivas incidências ambientais.”2
Afetam de forma significativa uma área integrada da Rede Natura “o projeto ou a ação: (i) que revelam produzir efeitos negativos sobre a biodiversidade biológica, impedindo a conversão ou o restabelecimento de habitats naturais de fauna e de flora, considerados em estado de conservação favorável; ou (ii) que ponham em causa a proteção, gestão e controlo das espécies ou a regulamentação da sua exploração.”3, sendo que a obrigação de aferir as incidências ambientais não incide somente sobre os projetos ou ações, abrangendo também os planos.
O que está em causa é, portanto, a obrigatoriedade de avaliação do ponto de vista ambiental, de todas as atuações humanas que, não se destinando expressamente a assegurar a gestão dos sítios, contribuam para gerar um efeito considerável ou relevante sobre as respetivas espécies e habitats protegidos.
Poder-se-ão distinguir três regimes em matéria de avaliação ambiental, sendo eles o regime de avaliação de impacte ambiental (RAIA) de projetos públicos e privados, consagrado no Decreto-Lei nº69/2000, cuja redação atual se encontra no Decreto-Lei n.º 151-B/2013 de 31 de outubro; o regime de avaliação ambiental estratégica (RAAE) de planos e programas, constante no Decreto-Lei nº 232/2007, tendo um cunho mais pragmático; e por fim, o já supra citado regime de incidências ambientais (RAIncA) de planos, projetos e ações Decreto-Lei nº 49/2005, sendo este bastante mais circunscrito, uma vez que, nos termos do artigo 10º/1, esta afere apenas do respeito pelos objetivos de conservação da Rede Natura 2000.
Relativamente à eventualidade de estarmos perante uma atividade sujeita a AAE, e a AIA, é necessário esclarecer que entre a avaliação ambiental de planos e programas/avaliação ambiental estratégica, e a avaliação de impacte ambiental existe uma relação de complementaridade, e, enquanto que o objeto paradigmático da AIA é um projeto que enquadra e delimita uma obra, o objeto paradigmático da AAPP/AAE é um documento que enquadra e delimita a futura realização de projetos e de obras, sendo que no direito comparado nunca foram entendidas como excludentes, mas no máximo como complementares. Ou seja, na AAE são examinados os pressupostos de natureza geral relativos à compatibilidade ambiental do projeto, surgindo num momento prévio e sendo realizada pela entidade pública autora do plano ou programa, enquanto que na AIA são examinados em detalhe os vários aspetos pertinentes ao impacto ambiental do projeto, debruçando-se sobre um determinado projeto em concreto, e sendo realizada por uma entidade ambiental.
Não se afigura possível afirmar que um plano ou programa é suscetível de ser avaliado com um detalhe tal que daí se possa dizer que essa avaliação já inclui uma verdadeira AIA, contudo a Comissão Europeia tem entendido que tal pode acontecer apenas em casos excecionais e devidamente justificados (ou seja, isentar um projeto específico, total ou parcialente, de AIA), quando haja 1) urgência ou necessidade imperiosa do projeto; 2) impossibilidade de realização do projeto mais cedo; 3) impossibilidade de preencher todos os requisitos da diretiva 85/337/CEE (relativa à avaliação dos efeitos de determinados projetos públicos e privados no ambiente), sendo ainda necessária uma razão de força que justifique a exceção (como ameaças sérias à vida ou ao ambiente, saúde, segurança publica), tendo Tribunal Europeu de Justiça afirmado o caráter restritivo do regime de dispensa.
Mas qual o regime aplicável quando estejamos perante uma atividade abrangida por mais do que um regime de avaliação de impacto ambiental, uma vez que a AIncA poderá eventualmente bulir com a AAE de planos e programas, e/ou com a AIA de projetos publicos e privados (tendo em conta o princípio de não duplicação de avaliação ambiental, sufragada por alguma doutrina4)?
Partindo da premissa de que, quando por exigências de Direito Comunitário, haja sobreposição da aplicação das Diretiva 2001/42/CE, aplicável aos planos e programas, e a Diretiva AIA, aplicável aos projetos, a aplicação será cumulativa e nunca requisito de dispensa do procedimento de AIA, dadas as diferenças (supra explicitadas) entre os dois instrumentos de avaliação ambiental em presença, poder-se-á colocar a questão de saber se haverá uma total vinculatividade à não duplicação de avaliação de incidências ambientais, segundo o qual um impacto ambiental deve ser “avaliado unicamente no nivel em que possa ser objeto da melhor analise”5.
Havendo sobreposição com AAE, os números 8 e 9 do artigo 3º do RAAE, resolvem o problema, estatuindo que deve realizar-se apenas o procedimento de avaliação estratégica, e, atendendo a que todos os planos abrangidos pelo artigo 10º do RJRN2000 estão tambem sujeitos a uma avaliacão estratégica, existe uma absorção da AincA pela AAE, perdendo a AincA parte da sua utilidade, ao manter-se apenas para ações e projetos, que poderá ficar eventualmente comprometida, pelo facto de o artigo 10º/2 RJRN2000 dispôr que, quando um projeto esteja sujeito a AIA, a AincA segue a forma do procedimento de AIA, acabando esta por ter um âmbito de aplicação alargado especialmente por, de acordo com o artigo 2º, alinea b) do RAIA, o conceito de “áreas sensíveis” abarcar todos os sitios da Rede Natura 2000.
Qual a utilidade então deste instituto, tendo em conta que, “quer relativamente aos planos, quer relativamente a um grande número de ações e projetos, a análise de incidências ambientais não tem existência autónoma6, a se”?
É compreensível e louvável a preocupação do legislador na criação de um regime que se propusesse a preservar áreas específicas, através da obrigatoriedade de submeter a avaliação ambiental, planos e programas que incidissem sobre as mesmas. Contudo, devido à “miscelânea ou um emaranhado de regimes nada harmonioso e, por vezes, até um pouco caótico”, poder-se-á questionar se o regime em questão não acaba por suscitar mais dúvidas, e ao invés de cumprir os objetivos propostos, baralhar o intérprete na aplicação do direito, podendo eventualmente ser contraproducente, “com a agravante de que, nos casos residuais em que não se aplica nenhum desses regimes, vigora um quase total vazio normativo. Isto é, o legislador confiou tanto no sistema de remissões que criou, que acabou por descurar a propria regulamentação do instituto em causa.”7
Pensamos que seria mais proveitoso, ao invés da criação de regimes que muitas vezes se sobrepõem, a criação de um regime simplificado, possibilitando uma maior tutela da biodiversidade, garantindo o cumprimento de análises ambientais, por institutos imparciais, assegurando um regime efetivamente útil e eficaz. Apoiando as grandes críticas feitas por Tiago Antunes relativamente a este aspeto, consideramos que a AincA é um regime de pouca utilidade, que de novo, pouco traz ao Direito do Ambiente.
Para finalizar, não menos importante é a incongruente solução normativa constante no artigo 10.º, números 10 e 11 do RJRN2000 (estabelecendo o n.º 11 um regime mais apertado, exigindo parecer prévio da Comissão Europeia), de acordo com o qual uma avaliação ambiental negativa pode ser ultrapassada através de um despacho ministerial, e da adoção de medidas compensatórias. Ou seja, face a uma avaliação ambiental que não seja aprovada, poderá haver uma convolação, “por despacho conjunto do Ministro do Ambiente e do Ordenamento do Territorio e do ministro competente em razao da matéria, da ausência de soluções alternativas e da sua necessidade por razões imperativas de reconhecido interesse público, incluindo de natureza social ou económica” citando o referido 10º/10. Ora, se por um lado esta solução mitiga alguma da rigidez e inflexibilidade do regime da Rede Natura 2000, sobretudo quando estão em causa projetos de manifesta utilidade pública, e para os quais não existem alternativas de localização, por outro lado, digamos que não faz qualquer sentido que uma avaliação ambiental, submetida a órgão competente para que este a decida, no caso de decidir pela não aceitação do plano ou projeto, seja “neutralizado” por via de uma decisão ministerial, ainda que as suas consequências sejam nefastas para o ambiente.
Como tal, é no mínimo chocante que, localizando-se um projeto fora da Rede Natura 2000, o respetivo “chumbo” ambiental seja definitivo e não podendo, em circunstância alguma, ser superado, como decorre do disposto no artigo 20º RAIA, segundo o qual, mediante DIA desfavorável, por maior que seja o interesse público, nunca o projeto poderá ser licenciado, sob pena de nulidade, mas se o mesmo projeto se situar numa ZEC ou numa ZPE – que são, por definição, áreas de maior sensibilidade ecológica –, a avaliação ambiental negativa já pode ser ultrapassada. Portanto, o interesse público de um projeto de nada vale quando este se localiza numa zona banal; mas já permite legitimar ou mesmo “branquear” um atentado aos habitats e às espécies existentes numa zona classificada.
Tal solução é absolutamente incoerente, não encontrando paralelo a nível comunitário. Nestes casos, deve a ponderação da referida neutralização por despacho ministerial ser feita mediante as circunstâncias do caso em concreto.8

1. ANTUNES, Tiago, Singularidades de um Regime Ecológico  O Regime jurídico da Rede Natura 2000 e, emparticular, adeficncias da análise de incidências ambientais, in No Ano Internacional da Biodiversidade, e- book,Lisboa, ICJP, 2010, pp. 196.
2. ANTUNES, Tiago, ibidem, pp. 196.
3. ALMEIDA, José Mário Ferreira de, O velho, o novo e o reciclado no Direito da Conservação da Natureza, inNo AnInternacional da Biodiversidade, e-book, Lisboa, ICJP, 2010, pp. 99.
4Vide ALTE, Tiago Sousa d’/RAIMUNDO, Miguel Assis, O Regime de Avaliação Ambiental de Planos e Programas e a sua Integração no Edifício da Avaliação Ambiental, in RJUA, n.º 29/30, 2008, pp. 144.
5. ALTE, Tiago Sousa d’/RAIMUNDO, Miguel Assis, ibidem pp.144.
6. ANTUNES, Tiago, op. Cit, pp. 204.
7. ANTUNES, Tiago, ibidem pp. 204.
8. Para mais desenvolvimentos sobre esta crítica vide ANTUNES, Tiago, ibidem pp. 208-213.



Referências Bibliográficas:

1. ALMEIDA, José Mário Ferreira de, O velho, o novo e o reciclado no Direito da Conservação da Natureza, in No Ano Internacional da Biodiversidade, e-book, Lisboa, ICJP, 2010, pp. 91-112;

2. ALTE, Tiago Sousa d’/RAIMUNDO, Miguel Assis, O Regime de Avaliação Ambiental de Planos e Programas e a sua Integração no Edifício da Avaliação Ambiental, in RJUA, n.º 29/30, 2008, pp. 125-156;

3. ANTUNES, Luís Filipe Colaço, O ato de avaliação de impacto ambiental entre discricionariedade e vinculação: velhas fronteiras e novos caminhos procedimentais da discricionariedade administrativa, in RJUA, n.º 2 (dezembro 1991), pp. 51-75;

4. ANTUNES, Tiago, Singularidades de um Regime Ecológico O Regime jurídico da Rede Natura 2000 e, em particular, as deficncias da análise de incidências ambientais, in No Ano Internacional da Biodiversidade, e-book, Lisboa, ICJP, 2010, pp. 147-213;

5. GASPAR, Pedro Portugal, A Avaliação de Impacto Ambiental, in RJUA, n.º 14 (dezembro 2000), pp. 83-143;

6. GOMES, Carla Amado, Uma mão cheia de nada, outra de coisa nenhuma, in No Ano Internacional da Biodiversidade, e-book, Lisboa, ICJP, 2010, pp. 7-51;

7. LOPES, Dulce, Avaliação de Impactes: que sistema para que problema? in Revista do CEDOUA, 14, ano VII, 2004, pp. 93-114;

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