A
Avaliação de Incidências Ambientais (AIncA) encontra-se regulada
no Decreto-Lei
n.º 140/99, de 24 de abril,
alterado pelo Decreto-Lei
n.º 49/2005, de 24 de fevereiro, dispondo o artigo
10.º/1 que "As
ações, planos ou projetos não diretamente relacionados com a
gestão de um Sítio da Lista Nacional de Sítios, de um Sítio de
Interesse Comunitário (SIC), de uma Zona Especial de Conservação
(ZEC) ou de uma Zona de Proteção Especial (ZPE), e não necessários
para essa gestão mas suscetíveis de afetar essa zona de forma
significativa, individualmente ou em conjugação com outras ações,
planos ou projetos, devem ser objeto de Avaliação de Incidências
Ambientais no que se refere aos objetivos de conservação da
referida zona." consistindo na avaliação prévia das
incidências ambientais das ações, planos ou projetos sobre uma
dessas zonas.
Contudo
“não é toda e qualquer atividade que
afete um sitio da Rede Natura 2000 que deve ser sujeita a AincA, mas
apenas aquelas que – numa apreciação necessariamente casuística
e discricionária – o afetem ≪de forma significativa≫”, o que
“introduz uma elevada dose de incerteza e subjetividade na
determinação das atividades cujos efeitos sobre a biodiversidade
devem ser objeto de uma avaliação prévia”1,
sendo esta análise não
apenas em função do plano, projeto ou ação individualmente
considerados, mas também das consequências que estes possam vir a
ter, em conjugação com outros planos, projetos ou ações, o que
“vem aumentar ainda mais o grau de indeterminação
no apuramento das atividades que – em atenção ao imperativo de
conservação da natureza – devem ser submetidas a uma análise das
respetivas incidências ambientais.”2
Afetam
de forma significativa uma área integrada da Rede Natura “o
projeto ou a ação: (i)
que
revelam produzir efeitos negativos sobre a biodiversidade biológica,
impedindo a conversão ou o restabelecimento de habitats
naturais
de fauna e de flora, considerados em estado de conservação
favorável;
ou
(ii)
que
ponham em causa a proteção, gestão e controlo das espécies ou a
regulamentação da sua exploração.”3,
sendo que a obrigação de aferir as incidências ambientais não
incide somente sobre os projetos ou ações, abrangendo também os
planos.
O
que está em causa é, portanto, a obrigatoriedade de avaliação do
ponto de vista ambiental, de todas as atuações humanas que, não se
destinando expressamente a assegurar a gestão dos sítios,
contribuam para gerar um efeito considerável ou relevante sobre as
respetivas espécies e habitats protegidos.
Poder-se-ão
distinguir três regimes em matéria de avaliação ambiental, sendo
eles o regime de avaliação de impacte ambiental (RAIA) de projetos
públicos e privados, consagrado no Decreto-Lei nº69/2000, cuja
redação atual se encontra no Decreto-Lei n.º 151-B/2013 de 31 de
outubro; o regime de avaliação ambiental estratégica (RAAE) de
planos e programas, constante no Decreto-Lei nº 232/2007, tendo um
cunho mais pragmático; e por fim, o já supra
citado regime de incidências ambientais (RAIncA) de planos, projetos
e ações Decreto-Lei nº 49/2005, sendo este bastante mais
circunscrito, uma vez que, nos termos do artigo 10º/1, esta afere
apenas do respeito pelos objetivos de conservação da Rede Natura
2000.
Relativamente
à eventualidade de estarmos perante uma atividade sujeita a AAE, e a
AIA, é necessário esclarecer que entre a avaliação ambiental de
planos e programas/avaliação ambiental estratégica, e a avaliação
de impacte ambiental existe uma relação de complementaridade, e,
enquanto que o objeto paradigmático da AIA é um projeto que
enquadra e delimita uma obra, o objeto paradigmático da AAPP/AAE é
um documento que enquadra e delimita a futura realização de
projetos e de obras, sendo que no direito comparado nunca foram
entendidas como excludentes, mas no máximo como complementares. Ou
seja, na AAE
são examinados os pressupostos de natureza geral relativos à
compatibilidade ambiental do projeto, surgindo num momento prévio e
sendo realizada pela entidade pública autora do plano ou programa,
enquanto que na AIA são examinados em detalhe os vários aspetos
pertinentes ao impacto ambiental do projeto, debruçando-se sobre um
determinado projeto em concreto, e sendo realizada por uma entidade
ambiental.
Não
se afigura possível afirmar que um plano ou programa é suscetível
de ser avaliado com um detalhe tal que daí se possa dizer que essa
avaliação já inclui uma verdadeira AIA, contudo a Comissão
Europeia tem entendido que tal pode acontecer apenas em casos
excecionais e devidamente justificados (ou seja, isentar um projeto
específico, total ou parcialente, de AIA), quando haja 1) urgência
ou necessidade imperiosa do projeto; 2) impossibilidade de realização
do projeto mais cedo; 3) impossibilidade de preencher todos os
requisitos da diretiva 85/337/CEE (relativa à avaliação dos
efeitos de determinados projetos públicos e privados no ambiente),
sendo ainda necessária uma razão de força que justifique a exceção
(como ameaças sérias à vida ou ao ambiente, saúde, segurança
publica), tendo
Tribunal Europeu de Justiça afirmado o caráter restritivo do regime
de dispensa.
Mas
qual o regime aplicável quando estejamos perante uma atividade
abrangida por mais do que um regime de avaliação de impacto
ambiental, uma vez que a AIncA poderá
eventualmente bulir com a AAE de planos e programas,
e/ou com a AIA de projetos publicos e privados (tendo
em conta o princípio de não duplicação de avaliação ambiental,
sufragada por alguma doutrina4)?
Partindo
da premissa de que, quando
por exigências de Direito Comunitário, haja sobreposição da
aplicação das Diretiva 2001/42/CE, aplicável aos planos e
programas, e a Diretiva AIA, aplicável aos projetos, a aplicação
será cumulativa e nunca requisito de dispensa do procedimento de
AIA, dadas as diferenças (supra
explicitadas) entre os dois instrumentos de avaliação ambiental em
presença, poder-se-á colocar a questão de saber se haverá uma
total vinculatividade à não
duplicação de avaliação de incidências ambientais, segundo o
qual um impacto ambiental
deve ser “avaliado unicamente no nivel em que possa ser objeto da
melhor analise”5.
Havendo
sobreposição com AAE, os números 8 e 9 do artigo 3º do RAAE,
resolvem o problema, estatuindo que deve realizar-se apenas o
procedimento de avaliação estratégica, e, atendendo a que todos os
planos abrangidos pelo artigo 10º do RJRN2000 estão tambem sujeitos
a uma avaliacão estratégica, existe uma absorção da AincA pela
AAE, perdendo a AincA parte da sua utilidade, ao manter-se apenas
para ações e projetos, que poderá ficar eventualmente
comprometida, pelo facto de o artigo 10º/2 RJRN2000 dispôr que,
quando um projeto esteja sujeito a AIA, a AincA segue a forma do
procedimento de AIA, acabando esta por ter um âmbito de aplicação
alargado especialmente por, de acordo com o artigo 2º, alinea b) do
RAIA, o conceito de “áreas sensíveis” abarcar todos os sitios
da Rede Natura 2000.
Qual
a utilidade então deste instituto, tendo em conta que, “quer
relativamente aos planos, quer relativamente a um grande número de
ações e projetos, a análise de incidências ambientais não tem
existência autónoma6,
a se”?
É
compreensível e louvável a preocupação do legislador na criação
de um regime que se propusesse a preservar áreas específicas,
através da obrigatoriedade de submeter a avaliação ambiental,
planos e programas que incidissem sobre as mesmas. Contudo, devido à
“miscelânea ou um emaranhado de regimes nada harmonioso e, por
vezes, até um pouco caótico”, poder-se-á questionar se o regime
em questão não acaba por suscitar mais dúvidas, e ao invés de
cumprir os objetivos propostos, baralhar o intérprete na aplicação
do direito, podendo eventualmente ser contraproducente, “com a
agravante de que, nos casos residuais em que não se aplica nenhum
desses regimes, vigora um quase total vazio normativo. Isto é, o
legislador confiou tanto no sistema de remissões que criou, que
acabou por descurar a propria regulamentação do instituto em
causa.”7
Pensamos
que seria mais proveitoso, ao invés da criação de regimes que
muitas vezes se sobrepõem, a criação de um regime simplificado,
possibilitando uma maior tutela da biodiversidade, garantindo o
cumprimento de análises ambientais, por institutos imparciais,
assegurando um regime efetivamente útil e eficaz. Apoiando as
grandes críticas feitas por Tiago Antunes relativamente a este
aspeto, consideramos que a AincA é um regime de pouca utilidade, que
de novo, pouco traz ao Direito do Ambiente.
Para
finalizar, não menos importante é a incongruente solução
normativa constante no artigo 10.º, números 10 e 11 do RJRN2000
(estabelecendo o n.º 11 um regime mais apertado, exigindo parecer
prévio da Comissão Europeia), de acordo com o qual uma avaliação
ambiental negativa pode ser ultrapassada através de um despacho
ministerial, e da adoção de medidas compensatórias. Ou seja, face
a uma avaliação ambiental que não seja aprovada, poderá haver uma
convolação, “por despacho conjunto do Ministro do Ambiente e do
Ordenamento do Territorio e do ministro competente em razao da
matéria, da ausência de soluções alternativas e da sua
necessidade por razões imperativas de reconhecido interesse público,
incluindo de natureza social ou económica” citando o referido
10º/10. Ora, se por um lado esta solução mitiga alguma da rigidez
e inflexibilidade do regime da Rede Natura 2000, sobretudo quando
estão em causa projetos de manifesta utilidade pública, e para os
quais não existem alternativas de localização, por outro lado,
digamos que não faz qualquer sentido que uma avaliação ambiental,
submetida a órgão competente para que este a decida, no caso de
decidir pela não aceitação do plano ou projeto, seja
“neutralizado” por via de uma decisão ministerial, ainda que as
suas consequências
sejam nefastas para o ambiente.
Como
tal, é no mínimo chocante que, localizando-se um projeto fora da
Rede Natura 2000, o respetivo “chumbo” ambiental seja definitivo
e não podendo, em circunstância alguma, ser superado, como decorre
do disposto no artigo 20º RAIA, segundo o qual, mediante DIA
desfavorável, por maior que seja o interesse público, nunca o
projeto poderá ser licenciado, sob pena de nulidade, mas se o mesmo
projeto se situar numa ZEC ou numa ZPE – que são, por definição,
áreas de maior sensibilidade ecológica –, a avaliação ambiental
negativa já pode ser ultrapassada. Portanto, o interesse público de
um projeto de nada vale quando este se localiza numa zona banal; mas
já permite legitimar ou mesmo “branquear” um atentado aos
habitats e às espécies existentes numa zona classificada.
Tal solução é absolutamente incoerente, não encontrando paralelo
a nível comunitário. Nestes casos, deve a ponderação da referida
neutralização por despacho ministerial ser feita mediante as
circunstâncias do caso em concreto.8
1. ANTUNES, Tiago, Singularidades de um Regime Ecológico – O Regime jurídico da Rede Natura 2000 e, emparticular, as deficiências da análise de incidências ambientais, in No Ano Internacional da Biodiversidade, e- book,Lisboa, ICJP, 2010, pp. 196.
2. ANTUNES, Tiago, ibidem, pp. 196.
3. ALMEIDA, José Mário Ferreira de, O velho, o novo e o reciclado no Direito da Conservação da Natureza, inNo Ano Internacional da Biodiversidade, e-book, Lisboa, ICJP, 2010, pp. 99.
4. Vide ALTE, Tiago Sousa d’/RAIMUNDO, Miguel Assis, O Regime de Avaliação Ambiental de Planos e Programas e a sua Integração no Edifício da Avaliação Ambiental, in RJUA, n.º 29/30, 2008, pp. 144.
5. ALTE, Tiago Sousa d’/RAIMUNDO, Miguel Assis, ibidem pp.144.
6. ANTUNES, Tiago, op. Cit, pp. 204.
7. ANTUNES, Tiago, ibidem pp. 204.
8. Para mais desenvolvimentos sobre esta crítica vide ANTUNES, Tiago, ibidem pp. 208-213.
Referências
Bibliográficas:
1. ALMEIDA,
José
Mário
Ferreira
de,
O
velho,
o
novo
e
o
reciclado
no
Direito
da
Conservação
da
Natureza,
in
No
Ano
Internacional
da
Biodiversidade,
e-book,
Lisboa,
ICJP,
2010,
pp.
91-112;
2.
ALTE, Tiago Sousa d’/RAIMUNDO, Miguel Assis, O Regime de Avaliação
Ambiental de Planos e Programas e a sua Integração no Edifício da
Avaliação Ambiental, in RJUA, n.º 29/30, 2008, pp. 125-156;
3.
ANTUNES, Luís Filipe Colaço, O ato de avaliação de impacto
ambiental entre discricionariedade e vinculação: velhas fronteiras
e novos caminhos procedimentais da discricionariedade administrativa,
in RJUA, n.º 2 (dezembro 1991), pp. 51-75;
4. ANTUNES,
Tiago,
Singularidades
de
um
Regime
Ecológico
–
O
Regime
jurídico
da
Rede
Natura
2000
e,
em
particular,
as
deficiências
da
análise
de
incidências
ambientais,
in
No
Ano
Internacional
da
Biodiversidade,
e-book,
Lisboa,
ICJP,
2010,
pp.
147-213;
5. GASPAR, Pedro Portugal,
A Avaliação de Impacto Ambiental, in RJUA, n.º 14 (dezembro 2000),
pp. 83-143;
6.
GOMES,
Carla
Amado,
Uma
mão
cheia
de
nada,
outra
de
coisa
nenhuma,
in
No
Ano
Internacional
da
Biodiversidade,
e-book,
Lisboa,
ICJP,
2010,
pp.
7-51;
7.
LOPES, Dulce, Avaliação de Impactes: que sistema para que problema?
in Revista do CEDOUA, 14, ano VII, 2004, pp. 93-114;
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