1 de junho de 2014

O comércio de títulos de utilização de água: verdade ou consequência? *



Os mercados de emissões de títulos representam, no Direito do Ambiente, um instrumento alternativo ao princípio do poluidor pagador e assentam na ideia de que a utilização dos recursos naturais não pode continuar a padecer dos excessos que até agora lhe são tão característicos.
Com o estabelecimento de mercados como estes visa-se, numa primeira fase, criar títulos de utilização dos recursos naturais, cuja transacção é deixada ao sabor do natural funcionamento do próprio mercado, através de negociações entre os agentes económicos que nele participam ou querem participar.
O objectivo a implementar é, pois, que a utilização dos recursos naturais, tendo custos associados, seja suportada directamente pelos agentes económicos que deles beneficiam. Assim, consegue-se o efeito de incorporar o custo social das suas actividades relacionados com o desgaste dos recursos à sua disposição nos seus próprios custos privados, fazendo-os a repensar os seus comportamentos face a esta despesa, logrando-se, ao mesmo tempo,  a diminuição das actividades poluentes (ou, pelo menos, a minimização dos seus impactos).
A criação de mercados onde se transaccionam quotas, no que ao domínio do Ambiente respeita, remonta ao Protocolo de Quioto, onde se procedeu à criação de um comércio de emissões poluentes, que veio fixar o tecto máximo de poluição que cada agente económico pode emitir, mediante a aquisição de uma licença que tem associado o pagamento de um determinado preço[i].
Semelhante solução foi adoptada no domínio dos recursos hídricos, numa primeira fase, através da adopção de mecanismos de comando e controlo sobre a utilização dos recursos hídricos pelos particulares.
A natureza específica do bem água, caracterizada pela estreita conexão com direitos fundamentais, reclama todavia algumas considerações a ter presentes na consagração de um mercado onde se faça circular títulos de utilização.
À data da aprovação dos primeiros diplomas[ii], dizia-se que os mecanismos de comando e controlo não eram mais do que um modo de tutela pública sobre os recursos hídricos que integravam o domínio público[iii]. Assim, a administração das águas cabia sempre a entidades públicas que velavam pela utilização pública destes bens podendo apenas em determinadas situações e sob condições unilateralmente impostas, a sua execução ser confiada a particulares[iv].
No fundo, estes mecanismos de comando e controlo, traduziam-se na imposição de standards ambientais: visava-se, através da sua aplicação, lograr determinado patamar de referência ambiental, de racionalização dos recursos e de minimização dos impactos negativos decorrentes da sua utilização em massa e descuidada.
Actualmente, mantém-se a necessidade de se submeter a utilização e gestão dos recursos hídricos a um sistema de comando e controlo, nos termos do qual a utilização privativa de bens do domínio hídrico se encontra dependente da obtenção de um título público de utilização, que pode assumir a modalidade de licença ou de celebração de um contrato de concessão[v].
Mas, a ineficácia quanto à racionalização dos recursos hídricos que os sistemas de comando e controlo importavam,  justificou a procura de novas soluções. De entre elas, surgiu a Lei nº 58/2005 de 29 de Dezembro (Lei da Água) que  introduziu no nosso ordenamento jurídico a possibilidade de criação de mercados de águas, ao permitir que numa bacia hidrográfica, ou em parte dela, sejam transaccionados títulos de utilização de água[vi]/[vii].
Com a criação de um mercado como este no âmbito dos recursos hídricos, a Administração fixa um nível de utilização máximo que considere admissível para a exploração de um determinado recurso hídrico, repartindo-o entre os diversos operadores económicos dispostos a adquirir essa permissão de utilização. Numa segunda fase, e sempre sob o escrutínio da Administração, permite-se que os operadores possam negociar entre si a transacção dos seus títulos, evitando-se a cristalização no tempo da atribuição inicial e permitindo que os agentes económicos adaptem o volume de utilização às actividades que desenvolvem.
Diferentemente dos mecanismos de comando e controlo, que procuram estabelecer metas a alcançar na utilização dos recursos hídricos, que devem ser cumpridas indiferenciadamente por todos os utilizadores, os títulos transaccionáveis de quotas de utilização optam antes por prefixar o nível máximo permitido de utilização do recurso, ao mesmo tempo que permitem que os diferentes utilizadores que participam no mercado procedam, eles próprios, à gestão da utilização permitida, através da sua livre transacção de quotas entre si.
Assim, através deste sistema consegue-se uma distribuição equitativa dos custos associados à utilização dos recursos hídricos, pois que se permite aos agentes económicos que adaptem a utilização permitida pelas respectivas quotas às suas necessidades reais e efectivas, evitando-se desperdícios resultantes dessas utilizações.
Tem-se, pois, que os regimes em vigor até 2006[viii] procuravam assegurar a mera satisfação das necessidades de utilização dos recursos hídricos através da garantia de disponibilidade racional do recurso. Agora, depois da consagração de mercados de águas, vê-se que a principal vantagem que daí resulta consiste na possibilidade de auto-regulação da gestão do recursos hídricos pelo seu utilizador imediato.
O problema que se coloca na instituição de tais mercado é que, tendo estes a sua origem e razão de ser radicadas no princípio do valor económico da água, é difícil compatibilizá-lo com os parâmetros constitucionais, nomeadamente aqueles que determinam a sua gestão pública[ix]. É que, dotando-se das características essenciais dos bens do domínio público, também os recursos hídricos públicos se encontram subtraídos ao comércio jurídico privado, orientando-se pelos princípios da inalienabilidade, imprescritibilidade e impenhorabilidade. Ademais, é difícil conceber como é que os particulares possam gerir, eles próprios, um bem que, por natureza, é insusceptível de apropriação individual[x], podendo dirigir-se livremente ao mercado para adquirir ou alienar a sua permissão de utilização de um bem que pertence ao Estado[xi].
Portanto, o ponto em discussão é: o comércio de títulos de utilização de água traz uma verdade e, ao mesmo tempo, uma consequência. A verdade é que este instrumento permite a adaptação da utilização dos recursos hídricos às utilizações de cada operador económico, ao mesmo tempo que desonera a Administração da pesada tarefa de recolha de vasta informação sobre actividades que sejam ou que venham a ser objecto de regulação e dos critérios a que devem obedecer o seu exercício; a consequência deste mercado está, todavia, na (possível) usurpação da gestão pública de um bem que é público.
Apesar de os bens do domínio hídrico estarem subtraídos à titularidade dos particulares e, por isso, se diz que se encontram fora do comércio jurídico, tal indisponibilidade não obsta a que possam ser objecto de actos de disposição de natureza pública que lhes permitam uma utilização privativa desses bens, a qual se encontra justificada por ser a própria Administração que autoriza essa utilização quando estabelece o número de quotas a existir no mercado e ao distribui-las pelos agentes económicos interessados em participar nele. Note-se também que nos termos do art. 9.º/2 da Lei nº. Lei nº 54/2005 de 15 de Novembro,  a gestão de bens do domínio público hídrico por entidades de direito privado só pode ser desenvolvida ao abrigo de um título de utilização, emitido pela autoridade pública.
Acresce ainda o facto de que o que está verdadeiramente em causa nestes mercados não é uma negociação do bem água, até porque a exploração pelos particulares de recursos que pertençam ao Estado não pode implicar a transmissão da propriedade dos recursos explorados, mas antes o direito de utilização sobre esse bem, que tem associado a si o pagamento de um preço e a observância de uma série de obrigações.
O direito de utilização privativa de bens do domínio público, se bem que precário, permite também uma utilização em regime de exclusividade do bem, o que significa que o particular titular da licença de utilização pode opor a sua posição jurídica a actos de terceiros que perturbem o seu exercício. Esta utilização exclusiva do bem funciona como uma contrapartida pelo pagamento do preço associado à respectiva aquisição.
As dificuldades na passagem do crivo constitucional que o comércio de um bem que não é, por natureza, comercializável enfrenta têm procurado sido resolvidas pela doutrina através de meios que garantam um controlo administrativo apertado sobre as operações de transacção de quotas. A este propósito escreve TIAGO SOUZA D’ALTE[xii] que só se admite a livre transacção de quotas de utilização de recursos hídricos nas situações legalmente previstas e, para além dessas situações, não podem ter lugar outras, mesmo quando sejam objecto de um acto autorizativo da Administração, uma vez que não está ao alcance da Administração suprir o incumprimento de limites legalmente fixados. Note-se, que, para além deste controlo sobre os modos de transacção dos títulos, a Administração tem ainda a prorrogativa de obstar à produção dos efeitos que decorrem dessa transacção através de um controlo de mérito do caso concreto[xiii], podendo sindicar a transacção da quota através da reintegração na esfera do Estado da disponibilidade sobre o bem, o que evidencia a circunstância de na base desta sua actuação se encontrar um instrumento jurídico de direito público afecto à prossecução do princípio da indisponibilidade do interesse público.
Se é indiscutível que os bens do domínio público estão fora do comércio jurídico, não podendo ser objecto de direitos privados nem sequer de transmissão por instrumentos de direito privado[xiv], o direito de propriedade pública sobre o bem água confere à Administração os poderes de uso, fruição e defesa do domínio público, poderes estes que podem ser objecto de delegação em entidades privadas. O conteúdo do direito de propriedade pública sobre os bens, in casu, sobre a água, cifra-se num conjunto de faculdades autoritárias, manifestadas na prática de actos administrativos que permitem à Administração exercer uma melhor tutela sobre os bens integrados no seu domínio.
No uso desses poderes, conta-se a transferência da utilização do bem para operadores privados, transferência esta que não é acompanhada da transferência do domínio sobre o bem. Na verdade, essa transferência, tanto da Administração para os particulares prima facie, como dos próprios particulares entre si, só está autorizada mediante a verificação de uma série de exigências a estabelecer pela Administração[xv].
Portanto, visto ao pormenor, o funcionamento de um mercado como este não importa verdadeiramente a perda de um bem que, por excelência, se encontra no domínio público. Por outro lado, ao abrigo dos poderes de tutela e da (melhor) gestão dos bens do domínio público, existe uma não-verdade nas afirmações que tendem a obstar à gestão privada desses bens com base no argumento de que estes seriam bens subtraídos à comercialidade e aos actos que esta pressupõe, pois que, a implementação de quotas de utilização de bens, embora importe a prática de actos tipicamente regidos pelo direito privado[xvi], daí não advém a consequência de perda de propriedade do bem público. Estes actos, muito embora praticáveis, só o são sob o olhar escrutinador da Administração.
A segunda verdade sobre o mercado de quotas de utilização da água é que, face ao uso e fruição comum que o domínio público pressupõe[xvii], o exercício de poderes exclusivos sobre uma parcela pública determinada não colide com a fruição comum quanto aos mesmos, ou seja, tem-se que a sujeição do pagamento de um preço pela utilização do bem tem como fundamento o aproveitamento económico desse bem ao abrigo de um título jurídico-administrativo e não a utilização e fruição individuais desacompanhadas de qualquer contrapartida a favor da Administração, que as proporciona.
Respeitados os limites à sua transacção, tem-se que a consequência de um mercado em funcionamento segundo as regras apresentadas é a institucionalização de uma gestão pública partilhada sobre os recursos hídricos entre a Administração e os particulares.
Desta gestão partilhada, para além de resultar o planeamento e monitorização mais cuidados, consegue-se ainda imputar com mais facilidade a responsabilidade pela prática de um dano ao seu responsável pois que, pelo título se consegue identificar o seu portador e, consequentemente, o responsável pela prática de abusos no exercício dessa utilização[xviii]. Por outro lado ainda, um mercado como este contribui para o combate ao desperdício e utilização massificada e descuidada sobre estes bens.
Do exposto resulta a falta de verificação de consequências que possam obstar à institucionalização e funcionamento  dos mercados de águas no nosso ordenamento jurídico.

Ângela Cunha Carvalho

* O presente texto encontra-se, por opção da Autora, em desconformidade com o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa
[i] Sobre o comércio de emissões poluentes, remete-se para O(s) calcanhar(es) de Aquiles no Comércio de Emissões Poluentes, disponível em http://ambientesub2.blogspot.pt/search/label/%C3%82ngela%20Cunha%20Carvalho
[ii] Decreto n.º 8 de 1 de Dezembro de 1982 e Regulamento dos Serviços Hidráulicos, Diário do Governo, nº 290 de 22 de Dezembro de 1982.
[iii] Nos termos do art. 2.º/2 do Decreto-lei  nº 46/94 de 22 de Fevereiro, o domínio hídrico sujeito a mecanismos de comando e controlo abrangia o domínio público hídrico estabelecido no artigo 1.º do Decreto n.º 5787-IIII de 10 de Maio de 1919 e o domínio hídrico privado previsto nos art. 1385.º e seguintes do Código Civil.
[iv] O regulamento dos Serviços Hidráulicos de 1982 previa que a utilização das águas e dos demais bens do domínio hídrico ficassem sujeitos à emissão de actos autorizativos da Administração, a quem incumbia acautelar a correcta disponibilidade dos recursos e fiscalizar as actividades exercidas.
[v] Nos termos do preâmbulo do Decreto-Lei  nº 46/94 de 22 de Fevereiro, a licença caracteriza-se pela precariedade e pode ser atribuída por um prazo máximo de 10 anos ou de 35 anos, consoante as utilizações. Já o contrato de concessão, que pode atingir um prazo máximo de 75 anos, é, por regra, precedido de concurso público e caracteriza-se por ser um verdadeiro contrato administrativo com direitos e deveres específicos das partes contratantes.
[vi] Cfr. art.º 72.º Lei nº 58/2005 de 29 de Dezembro.
[vii] Na verdade, este instrumento não consubstanciou uma novidade absoluta no ordenamento jurídico. Já o Regulamento de Serviços Hidráulicos e o Decreto nº 5787-IIII de 19 de Maio, apesar de não atribuírem um específico valor económico à utilização da água, já previam o princípio do utilizador-pagador, fazendo impender sobre os beneficiários directos das utilizações o dever de pagamento de uma taxa anual destinada a remunerar os custos das medidas administrativas que permitiam essas utilizações. O pagamento das taxas variava consoante o volume de água utilizada e da potencialidade de efeitos nefastos que a actividade causava. Note-se que ainda não estava em causa considerar o recurso água como um bem económico mas apenas procurar resolver os problemas de externalidades negativas potencialmente gerados com a sua utilização.
[viii] Até à entrada em vigor da Lei nº 58/2005 de 31 de Dezembro que institui o mercado das águas
[ix] Atente-se no disposto do art. 81.º/1/a) CRP. Este disposto normativo determina que as águas constituem, ex vi constitutionis, objecto de um regime jurídico especial
[x] Atente-se no disposto do art. 202.º/2 do Código Civil: considera-se  fora do comércio todas as coisas que não podem ser objecto de direitos privados, tais como as que se encontram no domínio público e as que são, por natureza, insusceptíveis de apropriação individual.
[xi] O art. 2.º/2 da Lei nº 54/2005 de 15 de Novembro, que estabelece o regime jurídico da titularidade dos recursos hídricos é peremptório em fixar a titularidade dos recursos hídricos públicos no Estado, Regiões Autónomas, Municípios e Freguesias.
[xii] Tiago Souza D’Alte, Os novos mercados de águasO Comércio de Títulos no quadro da Lei da Água in Estudos em homenagem ao Professor Doutor Paulo de Pitta Cunha, Vol. II, Coimbra, 2010, pp. 957 e ss.
[xiii] Atente-se no facto de para a transacção ou cedência e utilização sobre os recursos hídricos terem de ser cumpridos os requisitos para a atribuição do título, que constam do art. 10.º e 27.º do Decreto-Lei nº 226-A/2007 de 31 de Maio. Está excluída a possibilidade de subtrair uma captação de água de uma bacia hidrográfica para outra sem consideração dos respectivos caudais ecológicos e do estado quantitativo e qualitativo das massas de águas.
[xiv] Cfr. art. 18.º, 19.º e 20.º do Decreto-Lei n.º 280/8007 de 7 de Agosto
[xv] A título exemplificativo, no conjunto de critérios orientadores da atribuição dos títulos de utilização destaca-se a  exigência de especificação meticulosa dos volumes de água que são objecto de transferência e ainda a necessidade de comunicação à Administração de Região Hidrográfica da ocorrência da transferência.
[xvi] Como sejam compra, venda, permuta e até mesmo especulação sobre as quotas.
[xvii] Atente-se no disposto no art. 58.º da Lei n.º 58/2005 de 29 de Dezembro, onde se prevê que os recursos hídricos do domínio público são de uso e fruição comum, não estando este uso e fruição sujeito a título de utilização.
[xviii] O legislador preocupou-se em estabelecer um conjunto de  deveres básicos aplicáveis a todos os títulos de utilização sobre os recursos hídricos. Neste sentido, o art. 57.º da Lei n.º58/2005 de 29 de Dezembro consagra os deveres básicos que todos os seus utilizadores estão adstritos pela atribuição do título.

Sem comentários:

Enviar um comentário