Os
mercados de emissões de títulos representam, no Direito do Ambiente, um
instrumento alternativo ao princípio do poluidor pagador e assentam na ideia de
que a utilização dos recursos naturais não pode continuar a padecer dos
excessos que até agora lhe são tão característicos.
Com
o estabelecimento de mercados como estes visa-se, numa primeira fase, criar títulos de utilização dos recursos naturais,
cuja transacção é deixada ao sabor do natural funcionamento do próprio mercado,
através de negociações entre os agentes económicos que nele participam ou
querem participar.
O
objectivo a implementar é, pois, que a utilização dos recursos naturais, tendo
custos associados, seja suportada directamente pelos agentes económicos que
deles beneficiam. Assim, consegue-se o efeito de incorporar o custo social das
suas actividades relacionados com o desgaste dos recursos à sua disposição nos
seus próprios custos privados, fazendo-os a repensar os seus comportamentos
face a esta despesa, logrando-se, ao mesmo tempo, a diminuição das actividades poluentes (ou,
pelo menos, a minimização dos seus impactos).
A
criação de mercados onde se transaccionam quotas, no que ao domínio do Ambiente
respeita, remonta ao Protocolo de Quioto, onde se procedeu à criação de um comércio de emissões poluentes, que veio
fixar o tecto máximo de poluição que cada agente económico pode emitir,
mediante a aquisição de uma licença
que tem associado o pagamento de um determinado preço[i].
Semelhante
solução foi adoptada no domínio dos recursos hídricos, numa primeira fase,
através da adopção de mecanismos de
comando e controlo sobre a utilização dos recursos hídricos pelos
particulares.
A
natureza específica do bem água, caracterizada pela estreita conexão com
direitos fundamentais, reclama todavia algumas considerações a ter presentes na
consagração de um mercado onde se faça circular títulos de utilização.
À
data da aprovação dos primeiros diplomas[ii],
dizia-se que os mecanismos de comando e
controlo não eram mais do que um modo de tutela pública sobre os recursos hídricos que integravam o domínio
público[iii].
Assim, a administração das águas cabia sempre a entidades públicas que velavam
pela utilização pública destes bens podendo apenas em determinadas situações e
sob condições unilateralmente impostas, a sua execução ser confiada a
particulares[iv].
No
fundo, estes mecanismos de comando e
controlo, traduziam-se na imposição de standards
ambientais: visava-se, através da sua aplicação, lograr determinado patamar de
referência ambiental, de racionalização dos recursos e de minimização dos
impactos negativos decorrentes da sua utilização em massa e descuidada.
Actualmente,
mantém-se a necessidade de se submeter a utilização e gestão dos recursos
hídricos a um sistema de comando e controlo, nos termos do qual a utilização
privativa de bens do domínio hídrico se encontra dependente da obtenção de um título público de utilização, que pode
assumir a modalidade de licença ou de
celebração de um contrato de concessão[v].
Mas,
a ineficácia quanto à racionalização dos recursos hídricos que os sistemas de comando e controlo
importavam, justificou a procura de
novas soluções. De entre elas, surgiu a Lei nº 58/2005 de 29 de Dezembro (Lei
da Água) que introduziu no nosso
ordenamento jurídico a possibilidade de criação de mercados de águas, ao permitir que numa bacia hidrográfica, ou em parte
dela, sejam transaccionados títulos de utilização de água[vi]/[vii].
Com
a criação de um mercado como este no âmbito dos recursos hídricos, a Administração
fixa um nível de utilização máximo
que considere admissível para a exploração de um determinado recurso hídrico,
repartindo-o entre os diversos operadores económicos dispostos a adquirir essa permissão de utilização. Numa segunda
fase, e sempre sob o escrutínio da Administração, permite-se que os operadores
possam negociar entre si a transacção dos seus títulos, evitando-se a cristalização
no tempo da atribuição inicial e permitindo que os agentes económicos adaptem o
volume de utilização às actividades que desenvolvem.
Diferentemente
dos mecanismos de comando e controlo,
que procuram estabelecer metas a alcançar na utilização dos recursos hídricos,
que devem ser cumpridas indiferenciadamente por todos os utilizadores, os títulos transaccionáveis de quotas de
utilização optam antes por prefixar o nível máximo permitido de utilização
do recurso, ao mesmo tempo que permitem que os diferentes utilizadores que
participam no mercado procedam, eles próprios, à gestão da utilização
permitida, através da sua livre transacção de quotas entre si.
Assim,
através deste sistema consegue-se uma distribuição equitativa dos custos associados
à utilização dos recursos hídricos, pois que se permite aos agentes económicos
que adaptem a utilização permitida pelas respectivas quotas às suas
necessidades reais e efectivas, evitando-se desperdícios resultantes dessas
utilizações.
Tem-se,
pois, que os regimes em vigor até 2006[viii]
procuravam assegurar a mera satisfação das necessidades de utilização dos
recursos hídricos através da garantia de disponibilidade racional do recurso.
Agora, depois da consagração de mercados de águas, vê-se que a principal
vantagem que daí resulta consiste na possibilidade de auto-regulação da gestão
do recursos hídricos pelo seu utilizador imediato.
O
problema que se coloca na instituição de tais mercado é que, tendo estes a sua
origem e razão de ser radicadas no princípio
do valor económico da água, é difícil compatibilizá-lo com os parâmetros constitucionais,
nomeadamente aqueles que determinam a sua gestão pública[ix]. É
que, dotando-se das características essenciais dos bens do domínio público,
também os recursos hídricos públicos se encontram subtraídos ao comércio
jurídico privado, orientando-se pelos princípios da inalienabilidade, imprescritibilidade
e impenhorabilidade. Ademais, é
difícil conceber como é que os particulares possam gerir, eles próprios, um bem
que, por natureza, é insusceptível de apropriação individual[x],
podendo dirigir-se livremente ao mercado para adquirir ou alienar a sua
permissão de utilização de um bem que pertence ao Estado[xi].
Portanto,
o ponto em discussão é: o comércio de títulos de utilização de água traz uma verdade e, ao mesmo tempo, uma consequência. A verdade é que este
instrumento permite a adaptação da utilização dos recursos hídricos às
utilizações de cada operador económico, ao mesmo tempo que desonera a
Administração da pesada tarefa de recolha de vasta informação sobre actividades
que sejam ou que venham a ser objecto de regulação e dos critérios a que devem
obedecer o seu exercício; a consequência deste mercado está, todavia, na
(possível) usurpação da gestão pública de um bem que é público.
Apesar
de os bens do domínio hídrico estarem subtraídos à titularidade dos
particulares e, por isso, se diz que se encontram fora do comércio jurídico, tal indisponibilidade não obsta a que
possam ser objecto de actos de disposição
de natureza pública que lhes permitam uma utilização privativa desses bens,
a qual se encontra justificada por ser a própria Administração que autoriza
essa utilização quando estabelece o número de quotas a existir no mercado e ao
distribui-las pelos agentes económicos interessados em participar nele. Note-se
também que nos termos do art. 9.º/2 da Lei nº. Lei nº 54/2005 de 15 de
Novembro, a gestão de bens do domínio público hídrico por entidades de direito
privado só pode ser desenvolvida ao abrigo de um título de utilização, emitido
pela autoridade pública.
Acresce
ainda o facto de que o que está verdadeiramente em causa nestes mercados não é
uma negociação do bem água, até
porque a exploração pelos particulares de recursos que pertençam ao Estado não
pode implicar a transmissão da propriedade dos recursos explorados, mas antes o
direito de utilização sobre esse bem,
que tem associado a si o pagamento de um preço
e a observância de uma série de obrigações.
O
direito de utilização privativa de bens do domínio público, se bem que precário,
permite também uma utilização em regime de exclusividade do bem, o que
significa que o particular titular da licença de utilização pode opor a sua posição jurídica a actos de
terceiros que perturbem o seu exercício. Esta utilização exclusiva do bem
funciona como uma contrapartida pelo pagamento do preço associado à respectiva aquisição.
As
dificuldades na passagem do crivo constitucional que o comércio de um bem que
não é, por natureza, comercializável enfrenta têm procurado sido resolvidas
pela doutrina através de meios que garantam um controlo administrativo apertado
sobre as operações de transacção de quotas. A este propósito escreve TIAGO
SOUZA D’ALTE[xii]
que só se admite a livre transacção de
quotas de utilização de recursos hídricos nas situações legalmente previstas e,
para além dessas situações, não podem ter lugar outras, mesmo quando sejam
objecto de um acto autorizativo da Administração, uma vez que não está ao
alcance da Administração suprir o incumprimento de limites legalmente fixados.
Note-se, que, para além deste controlo sobre os modos de transacção dos
títulos, a Administração tem ainda a prorrogativa de obstar à produção dos
efeitos que decorrem dessa transacção através de um controlo de mérito do caso concreto[xiii],
podendo sindicar a transacção da quota através da reintegração na esfera do
Estado da disponibilidade sobre o bem, o que evidencia a circunstância de na
base desta sua actuação se encontrar um instrumento jurídico de direito público
afecto à prossecução do princípio da
indisponibilidade do interesse público.
Se
é indiscutível que os bens do domínio público estão fora do comércio jurídico,
não podendo ser objecto de direitos privados nem sequer de transmissão por
instrumentos de direito privado[xiv],
o direito de propriedade pública sobre o bem água confere à Administração os
poderes de uso, fruição e defesa do
domínio público, poderes estes que podem ser objecto de delegação em entidades
privadas. O conteúdo do direito de propriedade pública sobre os bens, in casu, sobre a água, cifra-se num
conjunto de faculdades autoritárias, manifestadas na prática de actos
administrativos que permitem à Administração exercer uma melhor tutela sobre os bens
integrados no seu domínio.
No
uso desses poderes, conta-se a transferência
da utilização do bem para operadores privados, transferência esta que não é
acompanhada da transferência do domínio sobre o bem. Na verdade, essa
transferência, tanto da Administração para os particulares prima facie, como dos próprios particulares entre si, só está
autorizada mediante a verificação de uma série de exigências a estabelecer pela
Administração[xv].
Portanto,
visto ao pormenor, o funcionamento de um mercado como este não importa verdadeiramente a perda de um bem que, por excelência, se encontra no domínio
público. Por outro lado, ao abrigo dos poderes de tutela e da (melhor) gestão
dos bens do domínio público, existe uma não-verdade nas afirmações que tendem a
obstar à gestão privada desses bens com base no argumento de que estes seriam
bens subtraídos à comercialidade e aos actos que esta
pressupõe, pois que, a implementação de quotas de utilização de bens, embora
importe a prática de actos tipicamente regidos pelo direito privado[xvi],
daí não advém a consequência de perda
de propriedade do bem público. Estes actos, muito embora praticáveis, só o são
sob o olhar escrutinador da Administração.
A
segunda verdade sobre o mercado de
quotas de utilização da água é que, face ao uso
e fruição comum que o domínio público pressupõe[xvii],
o exercício de poderes exclusivos sobre uma parcela pública determinada não
colide com a fruição comum quanto aos mesmos, ou seja, tem-se que a sujeição do
pagamento de um preço pela utilização
do bem tem como fundamento o aproveitamento
económico desse bem ao abrigo de um título jurídico-administrativo e não a
utilização e fruição individuais desacompanhadas de qualquer contrapartida a favor da Administração, que as proporciona.
Respeitados
os limites à sua transacção, tem-se que a consequência
de um mercado em funcionamento segundo as regras apresentadas é a
institucionalização de uma gestão pública
partilhada sobre os recursos hídricos entre a Administração e os particulares.
Desta
gestão partilhada, para além de resultar o planeamento e monitorização mais
cuidados, consegue-se ainda imputar com mais facilidade a responsabilidade pela
prática de um dano ao seu responsável pois que, pelo título se consegue
identificar o seu portador e, consequentemente, o responsável pela prática de
abusos no exercício dessa utilização[xviii].
Por outro lado ainda, um mercado como este contribui para o combate ao
desperdício e utilização massificada e descuidada sobre estes bens.
Do
exposto resulta a falta de verificação de consequências que possam obstar à
institucionalização e funcionamento dos
mercados de águas no nosso ordenamento jurídico.
Ângela Cunha Carvalho
*
O presente texto encontra-se, por opção da Autora, em desconformidade com o
Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa
[i] Sobre o comércio de emissões
poluentes, remete-se para O(s)
calcanhar(es) de Aquiles no Comércio de Emissões Poluentes, disponível em
http://ambientesub2.blogspot.pt/search/label/%C3%82ngela%20Cunha%20Carvalho
[ii] Decreto n.º 8
de 1 de Dezembro de 1982 e Regulamento dos Serviços Hidráulicos, Diário do
Governo, nº 290 de 22 de Dezembro de 1982.
[iii] Nos termos do art. 2.º/2 do
Decreto-lei nº 46/94 de 22 de Fevereiro,
o domínio hídrico sujeito a
mecanismos de comando e controlo abrangia
o domínio público hídrico estabelecido no artigo 1.º do Decreto n.º 5787-IIII
de 10 de Maio de 1919 e o domínio hídrico privado previsto nos art. 1385.º e
seguintes do Código Civil.
[iv] O regulamento
dos Serviços Hidráulicos de 1982 previa que a utilização das águas e dos demais
bens do domínio hídrico ficassem sujeitos à emissão
de actos autorizativos da Administração, a quem incumbia acautelar a
correcta disponibilidade dos recursos e fiscalizar as actividades exercidas.
[v] Nos termos do preâmbulo do Decreto-Lei nº 46/94 de 22 de Fevereiro, a licença caracteriza-se pela precariedade e pode ser
atribuída por um prazo máximo de 10 anos ou de 35 anos, consoante as
utilizações. Já o contrato de concessão, que pode atingir um prazo máximo de 75
anos, é, por regra, precedido de concurso público e caracteriza-se por ser um
verdadeiro contrato administrativo com direitos e deveres específicos das
partes contratantes.
[vii]
Na verdade, este instrumento não consubstanciou uma novidade absoluta no
ordenamento jurídico. Já o Regulamento de Serviços Hidráulicos e o Decreto nº
5787-IIII de 19 de Maio, apesar de não atribuírem um específico valor económico
à utilização da água, já previam o princípio do utilizador-pagador, fazendo impender
sobre os beneficiários directos das utilizações o dever de pagamento de uma
taxa anual destinada a remunerar os custos das medidas administrativas que permitiam
essas utilizações. O pagamento das taxas variava consoante o volume de água
utilizada e da potencialidade de efeitos nefastos que a actividade causava. Note-se
que ainda não estava em causa considerar o recurso água como um bem económico mas apenas procurar resolver os
problemas de externalidades negativas potencialmente gerados com a sua utilização.
[viii] Até à entrada em vigor da Lei nº
58/2005 de 31 de Dezembro que institui o mercado das águas
[ix] Atente-se no disposto do art.
81.º/1/a) CRP. Este disposto normativo determina que as águas constituem, ex vi constitutionis, objecto de um
regime jurídico especial
[x] Atente-se no disposto do art.
202.º/2 do Código Civil: considera-se fora do comércio todas as coisas que não podem
ser objecto de direitos privados, tais como as que se encontram no domínio
público e as que são, por natureza, insusceptíveis de apropriação individual.
[xi] O art. 2.º/2 da Lei nº 54/2005
de 15 de Novembro, que estabelece o regime jurídico da titularidade dos
recursos hídricos é peremptório em fixar a titularidade dos recursos hídricos
públicos no Estado, Regiões Autónomas, Municípios e Freguesias.
[xii] Tiago Souza
D’Alte, Os novos mercados de águas: O Comércio de Títulos no quadro da Lei da
Água in Estudos em homenagem ao
Professor Doutor Paulo de Pitta Cunha, Vol. II,
Coimbra, 2010, pp. 957 e ss.
[xiii] Atente-se no
facto de para a transacção ou cedência e utilização sobre os recursos hídricos
terem de ser cumpridos os requisitos para a atribuição do título, que constam
do art. 10.º e 27.º do Decreto-Lei nº 226-A/2007 de 31 de Maio. Está excluída a
possibilidade de subtrair uma captação de água de uma bacia hidrográfica para
outra sem consideração dos respectivos caudais ecológicos e do estado
quantitativo e qualitativo das massas de águas.
[xiv] Cfr. art. 18.º, 19.º e 20.º do Decreto-Lei
n.º 280/8007 de 7 de Agosto
[xv] A título
exemplificativo, no conjunto de critérios orientadores da atribuição dos
títulos de utilização destaca-se a
exigência de especificação meticulosa dos volumes de água que são
objecto de transferência e ainda a necessidade de comunicação à Administração
de Região Hidrográfica da ocorrência da transferência.
[xvi] Como sejam compra, venda,
permuta e até mesmo especulação sobre as quotas.
[xvii] Atente-se no disposto no art.
58.º da Lei n.º 58/2005 de 29 de Dezembro, onde se prevê que os recursos
hídricos do domínio público são de uso e fruição comum, não estando este uso e
fruição sujeito a título de utilização.
[xviii] O legislador preocupou-se em
estabelecer um conjunto de deveres básicos aplicáveis a todos os
títulos de utilização sobre os recursos hídricos. Neste sentido, o art. 57.º da
Lei n.º58/2005 de 29 de Dezembro consagra os deveres básicos que todos os seus
utilizadores estão adstritos pela atribuição do título.
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