1 de junho de 2014

Algumas considerações sobre a Natureza Jurídica da Responsabilidade por danos Ambientais


O DL 147/2008, de 29 de Julho era um diploma há muito aguardado. Na união europeia já existia a directiva nº 2004/35/CE, mas esta necessitava de ser transposta para a ordenamento jurídico nacional. Em Portugal não existia um sistema estruturado de responsabilidade por danos causados ao ambiente, sendo esta regulado por diversas leis avulsas, pelo que a sua revisão era muito esperada.
No entanto o DL 147/2008 foi alvo de duras críticas ao seu conteúdo, fruta da sua falta de clareza.
Comparando a directiva nº 2004/35/CE (posteriormente apenas designada como directiva) com o decreto de lei 147/2008 (posteriormente designado como DL) é visível que o legislador comunitário e o legislador nacional têm preocupações diferentes. Enquanto o primeiro apenas se ocupou dos danos ecológicos, o segundo para além dos danos ecológicos pretendeu abarcar também os danos pessoais e patrimoniais (chamados danos ambientais). Enquanto o legislador comunitário visou a prevenção da ocorrência de danos, ou sendo impossível, a sua reparação in natura o legislador nacional admitiu diferentes formas de compensação, incluindo o pagamento de uma indemnização (na falta de outras alternativas).
Assim, para o doutor Tiago Antunes o DL contemplou dois tipos distintos de responsabilidade ambiental (o de inspiração jurídico-pública definido a nível europeu mas também o civilista clássico).
O Doutor Tiago Antunes analisa o DL sob quatro ângulos distintos onde comprova essa natureza dúplice.
Quanto ao tipo de danos ambientais a responsabilidade civil pode ter uma natureza mais ecocêntrica ou mais antropocêntrica. No primeiro caso trata-se de reparar os danos à natureza em si mesma (danos ecológicos). No segundo trata-se de ressarcir os danos que embora causados por uma ofensa ambiental, se projectam sobre o património ou a personalidade de certos indivíduos (danos ambientais). A directiva apenas trata dos danos ecológicos, o DL trata dos danos ecológicos (artigo 11º/1/e), mas também dos danos causados por uma ofensa ambiental que se projectam no patrimoniais e personalidade dos indivíduos (capítulo II - artigos 7º-10º).
Quanto ao tipo de obrigações que gera a responsabilidade ambiental, esta pode ter uma natureza preventiva ou reparadora (dentro desta pode ainda ser de tipo restaurativo ou do tipo ressarcitório). A directiva consagrou um modelo ao mesmo tempo preventivo e reparador (anexo II da directiva - qualquer uma das três modalidades de reparação diz respeito à reparação in natura e não por equivalente pecuniário). Quanto ao DL, no capítulo III as coisas passam-se da mesma forma que na directiva. Já no capítulo II as coisas são bem diferentes. Aqui já não há qualquer referência à prevenção de danos e admite-se que o seu ressarcimento possa assumir a forma de indemnização (o artigo 10º/1 refere-se igualmente à reparação ou indemnização de danos, e uma vez que não há qualquer ressalva esta pode ser por equivalente pecuniário).
Outra diferença está na ambiência de direito público ou de direito privado que caracteriza cada um dos modelos em presença. Na directiva e no capítulo III do DL encontramos um regime com características jurídico-públicas. Ao contrário do capítulo III do DL onde encontramos um modelo tipicamente privatista.
O Doutor Tiago Antunes dá três exemplos: o primeiro resulta do facto de a directiva e do capítulo III do DL darem muito relevo ao papel das autoridades administrativas, à actuação das entidades públicas (O DL, no capítulo III faz várias referências à APA - agência Portuguesa do ambiente). Já o capítulo II do DL não prevê a intervenção de qualquer entidade administrativa (os artigos 7º a 10º referem-se exclusivamente a uma relação obrigacional ente o autor do dano e a respectiva vítima). O segundo depreende-se do capítulo III do DL - artigo 20º/1e 3. Estas normas dizem respeito a um conjunto de situações em que a actividade do operador causou o dano ambiental mas o dano não lhe deve ser imputado (o operador deve levar a cabo todas as medidas de prevenção e/ou reparação que se revelem necessárias, embora não tenha que assumir os respectivos custos). Já no capítulo II do DL, só está obrigado a reparar o dano quem seja responsável subjectiva ou objectivamente por ele. Por último a relevância contra-ordenacional do incumprimento das obrigações decorrentes do capítulo III. A directiva e o capítulo III do DL impõem aos operadores, sob pena de contra-ordenações, um conjunto de deveres de prevenção e reparação de danos ambientais. Já no capítulo II o que está em causa é só uma relação civilista entre um lesante e um lesado, pela qual o primeiro fica obrigado a ressarcir o segundo pela lesão que lhe infligiu.
Por último quanto à necessidade ou não de culpa, a responsabilidade ambiental pode ser subjectiva ou objectiva. No primeiro caso o agente apenas responde aos danos a que deu origem se actuou com dolo ou negligência. No segundo caso, o agente responde pelos danos a que deu origem, independentemente da culpa. Aqui quer o capítulo II quer o capítulo III do DL prevêem ambos os tipos de responsabilidade.
A responsabilidade objectiva está prevista quanto ao capítulo II no artigo 7º, e quanto ao capítulo III no artigo 12º e ambos remetem para o anexo III do DL, onde está listada um conjunto de actividades que se presumem perigosas.
A responsabilidade subjectiva está prevista quanto ao capítulo II, no artigo 8º e, quanto ao capítulo III, no artigo 13º Este tipo de responsabilidade aplica-se a todos aqueles que se dediquem a actividades não previstas no anexo III.
O regime que consta do DL constitui um alargamento face ao que consta da directiva, já que esta apenas prevê a responsabilidade subjectiva para os danos à biodiversidade. O legislador nacional não efectuou tal restrição de âmbito (no ordenamento jurídico nacional a responsabilidade subjectiva abrange também os danos à água e ao solo).
Em jeito de conclusão o doutor Tiago Antunes considera que esta natureza dúplice acabou por se revelar uma boa solução e justifica esta posição. Uma lesão ambiental pode gerar diferentes tipos de danos, com características bem diferentes. Assim faz sentido que a lei consagre diferentes tipos de responsabilidade ambiental adaptados à especialidade de cada tipo de dano (com a vantagem de estarem ambos regulados no mesmo DL). Para o doutor estas modalidades são mutuamente complementares e enriquecem o ordenamento jurídico-ambiental.
Mas podem-se levantar algumas dúvidas na aplicação destes dois regimes.
Uma dúvida que pode surgir é quanto à articulação entre o artigo 10º/1 e os artigos 12º/2 e 13º/2 do DL. Quando os danos resultarem da mesma conduta o DL manda aplicar primariamente as medidas de prevenção e/ou reparação do capítulo III, se essas medidas permitirem cobrir os danos individuais e ecológicos então já não haverá ressarcimento por via do capítulo II (artigo 10º/1). Se as medidas não permitirem por cobro total ou parcialmente aos danos individuais, então aplica-se a responsabilidade civil clássica nos termos do capítulo II.
Outra dúvida diz respeito aos danos ecológicos não abrangidos pelo capítulo III (danos ao ar e ao solo). O doutor Tiago Antunes defende que a solução deve passar pelo recurso às normas que antes do DL se aplicavam à responsabilidade ambiental, que embora imperfeitas evitam um vazio legal nessa matéria e a isenção da responsabilidade.
Por último, outra dúvida que se coloca é se a reparação dos danos subjectivos por via do capítulo II for accionada antes das medidas do capítulo III. Aqui tem de se abrir duas sub-hipóteses: se a reparação dos danos subjectivos for alcançada através de uma reconstituição in natura, então os objectivos do capítulo III ficarão automaticamente satisfeitos. Mas se não for assim a APA pode exigir a adopção de medidas de reparação dos danos ambientais afectados, não podendo o operador invocar a proibição da dupla cobrança de custos para se escusar a efectuar as medidas de reparação.

A professora Carla Amado Gomes critica esta bipolaridade da responsabilidade ambiental. A professora considera que o legislador nacional no capítulo III foi coerente com os objectivos da directiva. Porém ao inserir o capítulo II introduziu um elemento de dúvida, pois faz crer que no capítulo III não se trata de responsabilidade civil, que a responsabilidade de reparação do dano é primariamente da administração e não do operador (ou que se aplicaria apenas a entidades públicas, o que geraria um problema de articulação com a lei 67/2007). Para ela as situações do capítulo II estão cobertas pelas normas do CC nos artigos 483º ss (só o dano ecológico puro recomenda um regime especial de reparação e compensação de lesões, em virtude da especialidade dos bens).
No entanto apesar desta falsa bipolaridade jurídica a professora Carla Amado Gomes considera que existe uma autêntica dualidade de natureza fáctica, que se traduz na dupla faceta de praticamente todos os bens ambientais, corpórea e ecológica. Uma lesão num bem ambiental natural pode revelar-se andrógina, na medida em que quando o bem for corpóreo aos olhos do seu proprietário há um dano patrimonial, mas aos olhos de uma ONGA, de um autor popular ou da administração há um dano ecológico. Assim compreende-se a referência no artigo 10º/1 à proibição da dupla reparação, uma vez que a reparação do dano ecológico (que é prioritária) pode satisfazer plenamente o interesse indemnizatório do lesado, embora nem sempre. Tem de se articular a reparação do dano ecológico com a reparação do dano patrimonial do proprietário do bem.
A professora considera ainda que há outra bipolaridade dispensável, no que diz respeito à articulação entre o DL e a LBA (lei de bases do ambiente). O Dl (tal como a directiva), no artigo 11º/1/e não contempla os danos ao ar e ao solo. A professora propõe uma interpretação conforme à LBA, para por fim a esta dualidade prejudicial para a coerência do Direito do ambiente e da noção de dano ecológico.

Podemos assim concluir que o doutor Tiago Antunes é favorável a esta bipolaridade de regimes da responsabilidade presentes no DL 147/2008 porque considera que estas modalidades são mutuamente complementares e enriquecem o ordenamento jurídico-ambiental.
Já a professora Carla Amado Gomes apresenta uma visão crítica quanto a esta bipolaridade. Para a professora apenas o capítulo III devia constar do DL, sendo que o capítulo II se devia ter por não escrito, até porque as situações aí presentes estariam cobertas pelas normas do CC (artigo 483º ss).
Eu concordo com a posição do doutor Tiago Antunes porque considero que esta bipolaridade não prejudica o ordenamento jurídico-ambiental mas antes o enriquece.


Biografia:

Antunes, Tiago, Da natureza jurídica da Responsabilidade Ambiental, in Actas do colóquio – A Responsabilidade civil por dano Ambiental, e-book, Lisboa, ICJP, 2010, PP 121-152;
Gomes, Carla Amado, De que falamos quando falamos de Dano Ambiental? Direito, mentiras e críticas, in Actas do colóquio – A responsabilidade civil por Dano Ambiental, e-book, Lisboa, ICPJ, 2010, pp 153-171;
Leitão, Luís Manuel de Menezes, A Responsabilidade civil por Danos causados ao Ambiente, in Actas do colóquio – A Responsabilidade civil por Dano Ambiental, e-book, Lisboa, ICPJ, 2010 pp 21-41;
Silva, Vaco Pereira da, verde Cor de Direito – Lições de Direito do Ambiente, Coimbra, Almedina, 2002, pp 248-271.



Maria Inês Alves, Ano 4º, subturma 2, aluna nº 20909

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