Este texto pretende abordar uma questão muito especifica do Regime Avaliação de Impacte Ambiental (RAIA) que se prende com a possibilidade da administração, nada dizendo, autorizar um particular a explorar certa actividade que pode produzir graves danos para o meio ambiente.
Fala-se aqui do deferimento tácito previsto no art.º 19º nº 2 do decreto-lei 47/2014de 24 de Março que veio alterar o decreto-lei 151-B/2013 de 31 de Outubro (doravante RAIA).
Ora em primeiro lugar é necessário enquadrar a matéria em qual esta situação se insere sob pena de não se compreender devidamente o problema. Como se sabe a Avaliação de Impacte Ambiental é um meio preventivo de tutela do ambiente que a UE veio a impor que existisse nos ordenamentos jurídicos dos seus estados-membros. Assim vê-se que o RAIA prevê um procedimento que deve ser respeitado por entes públicos ou privados susceptíveis de provocar um dano substancial no meio ambiente. Não cabe aqui analisar exaustivamente o regime mas é necessário acrescentar que se deve ter em conta o art.º 2º RAIA para se compreender alguns dos conceitos aqui utilizados.
Como se pode ver pelo art.º 22º RAIA a decisão final deste procedimento, a Declaração de Impacte Ambiental (DIA) não é só por si um acto suficiente para autorizar a actividade sobre qual recai, mas é condição para que a mesma autorização possa ser concedida. Por outras palavras não vale só por si para autorizar uma actividade mas sem DIA a autorização não pode ser concedida.
Seguindo o procedimento de AIA vê-se que existem várias perícias e estudos que vão indicar se o DIA deve ser favorável, condicionalmente favorável, ou desfavorável. Assim vê-se que a DIA deve ser emitida após um estudo completo e ponderado sobre as questões sobre as quais podem surgir problemas ecológicos, mais, é ainda prevista no art.º 15º RAIA a consulta publica para dar uma maior transparência e poder de pronúncia sobre o processo em causa de modo a tornar a decisão mais informada, ou seja, o mais completa de informação possível de modo a que nenhuma situação escape à sua visão.
Assim sabe-se que cabe ao interessado, que tanto pode ter natureza pública ou privada, apresentar um Estudo de impacte Ambiental (EIA) com o projecto a licenciar à entidade competente para emitir o acto autorizativo final. Este deve submeter a documentação para a Autoridade de AIA. Depois segue-se geralmente uma fase de instrução onde se vê que a Autoridade de AIA tem plenos poderes para verificar a completude dos elementos necessários à instrução. è depois criada a Comissão de Avaliação como mostra o art.º 14º nº 3 RAIA, Comissão que verifica se o EIA está em conformidade com as exigências legais podendo emitir uma de três decisões, nomeadamente a conformidade do projecto, um pedido de aperfeiçoamento, ou a a desconformidade comportando neste ultimo cão a extinção do procedimento. Seguidamente abre-se a fase em que são consultadas entidades externas bem como um período em que se dá a possibilidade de participação pública, cujos resultados são ilustrados num relatório final. Findo todos estes procedimentos cabe à Comissão elaborar um projecto final de DIA que remete para a Autoridade de AIA que o deve analisar e que no prazo de 100 ou 80 dias (dependendo da natureza da actividade como mostra o art.º 19º nº 2 RAIA) deve-se pronunciar sobre a admissibilidade da actividade.
Não parece assim fazer sentido poder-se introduzir este mecanismo de deferimento tácito.
Escreve Carla Amado Gomes que “a solução (…) é contraproducente”, o que em minha opinião e ser bastante simpático para com a previsão do art.º 19º nº 2 RAIA.
Em primeiro lugar é preciso explorar com maior cuidado a questão do deferimento tácito em geral. Não sendo este um texto para a disciplina de Direito Administrativo não me é possível desenvolver a questão por longas linhas ficando apenas por dizer o mais importante. Deste modo é de referir que existem várias posições quanto a esta figura de aprovação de um acto administrativo mas parece ser de seguir a doutrina Teixeira de Sousa quando se refere ao deferimento tácito como uma manifestação tácita da vontade da Administração. Sabe-se que para que haja um acto administrativo é precisa uma conduta voluntária, contudo a lei prescinde dessa conduta fazendo uma ficção de que a mesma existe. Quer-se com isto dizer que é atribuído ao interessado tudo o que ele pretende com base numa ficção legal. Acrescenta-se ainda que essa ficção faz a Administração ficar isenta de justificar a sua opção.
Posto isto, dizer que a solução e contraproducente é pouco. No mínimo o legislador aqui provocou um escape grosseiro a um regime que se quer rigoroso e pouco falível. Afinal de contas joga-se com actividades que podem pôr gravemente em causa o meio ambiente de forma irreversível. Parece mais uma maneira da Administração se exonerar da obrigação de “chumbar” projectos que se mostram a partida incompatíveis com o regime apresentado. O que se quer dizer é que havendo um projecto que à priori seria chumbado, a Administração, querendo, pode aprova-lo se nada disser. Ainda que não querendo tomar posição numa discussão que deve ser apenas jurídica, esta situação não deixa muito à imaginação. Que razão teriam as autoridades competentes para possibilitar a exploração de uma actividade que apresenta um risco elevado para o ambiente se não houver um interesse ligado à mesma actividade. Por outras palavras, e fazendo passos lógicos: O RAIA apenas se aplica a actividades que podem por em causa a qualidade do ambiente; Estas actividades prendem-se especialmente com actividades industriais, que geralmente são exploradas por grandes grupos de empresas.
Seguindo este ponto só parecem haver duas razões explicativas para haver deferimento tácito, ou existe um interesse geral ou um interesse particular. Neste sentido entende-se como interesse geral por exemplo a grande importância que a actividade pode ter na economia e especialmente a importante perda económica que uma DIA desfavorável pode implicar.
Por interesse particular deve-se ter em conta qualquer vantagem que um indivíduo ou grupo de indivíduos possa ter por deixar de cumprir o seu dever de forma a permitir que alguma actividade seja licita mas indevidamente admitida. não se quer com isto dizer que todos os casos de deferimento tácito importem situações destas, devendo ser acrescentado que não se quer dizer que tal aconteça ou seja a regra em procedimento de AIA. Contudo deve-se ver que o legislador não criou esta solução por acaso nem sem ter em vista um fim especifico.
Posto isto deve-se acrescentar que esta solução mais do que contraproducente deve ser entendida como absurda e de mau tom num procedimento que envolve tantos sujeitos e custos em estudos e mais meios para entender se a actividade deve ou não ser licenciada e em que termos.
Não faz sentido que se exijam tantas formalidades e tantos actos de investigação e pesquisa para depois ser possível por inércia da Administração descartar tudo o que foi feito. É quase que um apelo à actuação negligente da Administração já que as autoridades competentes deixam de ter a obrigação de decidir com fundamento na sua decisão.
Além disso, e parece ser este o argumento mais importante, qual é a razão para permitir que seja presumida a vontade da Administração com o deferimento tácito quando existem no ordenamento português meios para suprimir a falta de actuação das entidades competentes quando obrigadas a tal? Fala-se como é obvio da acção administrativa especial de condenação à pratica do acto devido prevista no art.º 66º CPTA. Ora existindo este meio processual para qualquer interessado na produção do acto poder reagir contra a falta de actuação qual é o fundamento lógico para tal omissão ter os efeitos que tem? No meu ponto de vista, que vem no seguimento da posição do professor Vasco Pereira da Silva, nenhum.
Além de tudo o que foi dito é necessário verificar outra situação. Qual a tutela que é conferida a terceiros que possa vir a ser afectados com esta situação? Os sujeitos que não se encontram nesta relação procedimental sabem que existindo este regime se encontram protegidos contra actividades agressoras do ambiente, e portanto agressoras dos seus direitos, mas na verdade podem ver a sua posição gravemente prejudicada sem sequer perceber como reagir, já que as autoridades competentes habilitam a que tal suceda. Quanto a esta situação não parece haver resposta lógica possível.
Cabe dizer que este nº 2 do art.º 19º RAIA devia pura e simplesmente deixar de existir resolvendo assim uma questão que é, no mínimo, polémica. Resolvia-se assim um problema que o legislador criou por razoes que devem muito à razão. No entender de quem olha para este regime parece que o legislador encontrou aqui o melhor de dois mundos, ou seja, cumpriu a obrigação de respeitar as fontes de direito da União Europeia já que integrou na ordem jurídica nacional o conteúdo das directivas e mesmo assim continua a poder livremente atribuir DIAs favoráveis a quem quiser. O que se quer dizer com isto é que se abriu a possibilidade de se produzir um acto discricionário numa matéria em que deveria ser vinculado. Nas palavras de Freitas do Amaral vê-se que nenhum acto é inteiramente vinculado ou discricionário, mundano apenas a grau de vinculatividade que é apresentado. Pouco importa discutir esta matéria visto que parece claro que o problema aqui não é se o acto deve ser totalmente vinculado ou parcialmente vinculado. O problema é que o acto é discricionário quando deveria ser vinculado (ou pelo menos ser mais vinculado).
Bibliografia:
Gomes, Carla Amado; Introdução ao Direito do Ambiente;
Silva, Vasco Pereira da; Verde Cor de Direito, Lições de Direito do Ambiente;
Amaral, Diogo Freitas do; Curso de Direito Administrativo - Volume II;
Almeida, Mário Aroso de; Manual de Proceso Administrativo;
Canotilho, José Joaquim Gomes; Actos Autorizativos Jurídico-Públicos e Responsabilidade por Danos Ambientais
Vasco Simões, nº 20946 subturma 2
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