1 de junho de 2014

Até onde podemos adaptar?


Concluindo as nossas aventuras pelo mundo do Direito do Ambiente, trago aqui hoje uma pequena reflexão sobre os contratos de adaptação e promoção ambiental, mais concretamente no delicado aspecto da sua admissibilidade constitucional.
Contudo, o facto é que ainda antes das dúvidas sobre a admissibilidade deste tipo de contratos, já a própria actividade contratual da Administração Pública era alvo de algumas questões. Por este motivo, começarei com uma breve abordagem desse ponto.
Conforme aponta o Prof. Vasco Pereira da Silva, esta prática nem sempre foi tão normalmente admitida entre nós. Pelo contrário, foi no passado olhada com desconfiança pela doutrina clássica, que tinha dificuldade em conciliar a ideia de consenso com o entendimento da Administração enquanto poder. Também Maria Fernanda Maçãs faz referência a este ponto, lembrando que as relações jurídico-administrativas eram aquelas que pressupunham que a Administração se apresentasse numa posição de autoridade.
Contudo, o facto é que, com o passar do tempo e a evolução dos modelos administrativos, o recurso a formas contratuais tornou-se cada vez mais uma prática corrente, com claros benefícios, em comparação com situações de simples imposição unilateral de normas, por via de actos administrativos, dos quais se tornaram alternativa. A Prof. Maria João Estorninho vem inclusivamente apontar uma possível aproximação entre os vários contratos da Administração Pública, uma vez que o contrato administrativos, reconhecidamente, não era “tão exorbitante quanto isso”, e os contratos privados da Administração eram, apesar de todo, um pouco diferentes daqueles celebrados entre particulares.
Este crescente fenómeno de contratualização veio a ter incidências também sobre o Direito do Ambiente, sob as mais diversas formas. Caracterizado, como é, por alguma complexidade e contraposição entre interesses públicos e privados, dificilmente aconteceria o contrário. Os contratos de promoção e adaptação ambiental, que aqui abordarei, são precisamente formas contratuais de recurso bastante comum. A eles encontramos referência no D.L nº236/98, de 1 de Agosto, que estabelece as Normas sobre Qualidade da Água, nos seus Artigos 68.º e 78.º, respectivamente.
Previstos no mesmo diploma, trata-se de contratos diferentes, com fim, objecto, sujeitos, fiscalização e sanções diferentes.
Os referidos Artigos, nos seus respectivos primeiros números, prevêem os fins destes contratos, bem como os seus sujeitos. No entanto, cumpre fazer a ressalva de que estes não são necessariamente os únicos sujeitos da relação contratual, uma vez que, depois de celebrado o acordo, a ele podem vir a aderir, em momento posterior novas entidades, nos termos dos nº4 destes Artigos, motivo pelo qual estes contratos têm a natureza de contratos de adesão. Já os objectos dos contratos surgem previstos nos nº3. A nível de fiscalização e sanções, por outro lado, os dois regimes são praticamente idênticos, tal como assinalam os nº6, 7 e 8 dos respectivos Artigos.
Findos os aspectos que decorrem claramente da lei, estes contratos levantam algumas questões às quais cumpre atender.
A questão das suas naturezas bilaterais e de contratos administrativos não oferece, à partida grandes dificuldades, havendo uma grande concordância na doutrina relativamente a estes pontos. Em qualquer momento destes contratos, desde a sua negociação até à adesão de novas empresas, existe sempre um acordo de vontades. Por outro lado, existe sempre uma entidade pública envolvida na contratação, criando direitos e deveres de direito público. De resto, o Prof Vasco Pereira da Silva socorre-se dos Artigos 148.º e 178.º do CPA para sustentar, perante estes acordos, a formação ou modificação de relações jurídicas administrativas e a formação de contratos administrativos, respectivamente.
Ainda a propósito do CPA, o Professor considera ainda, atendendo ao Art.179.º/1, que fica resolvida a questão da admissibilidade da celebração de contratos, pela consagração da alternatividade entre os actos e contratos administrativos.
Pelos motivos acima apresentados, o Prof. Vasco Pereira da Silva acaba por criticar, com razão, na minha opinião, a opção do legislador por submeter as normas de descarga acordadas, em ambos os contratos, a fixação por via de posterior portaria, conforme se verifica pelos Arts.68.º/9 e 78.º/10. Considera que esta intervenção do Governo, em momento posterior ao contrato, não vem alterar nada em relação ao conteúdo ou eficácia de uma relação jurídica administrativa que, afinal, já existe. Assim, propõe uma interpretação dos preceitos, segundo os quais estas portarias não fixam coisa nenhuma, limitando-se a, no máximo, publicitar os resultados alcançados por via bilateral.
Pessoalmente, devo dizer que, apesar do seu inegável mérito, não acompanho completamente a posição do Prof. Conforme acima referi, a crítica que é feita à existência destas disposições parece-me fundada. Realmente, não vejo nenhuma utilidade específica em exigir a intervenção posterior ao contrato, por parte do Governo. É algo revelador de alguma desconfiança do legislador em relação ao seu próprio mecanismo, mas também de algum excesso de zelo. No entanto, a interpretação proposta pelo Prof não me parece a mais indicada. Se é certo, por um lado, que a portaria pode ter a eventual utilidade de publicitar os resultados alcançados, por outro não é assim tão simples ignorar ou dispensar o que resulta muito claramente da letra da lei, por mais criticável e despida de utilidade que esta seja, quando fala em fixação de normas, mantendo as portarias com uma função meramente decorativa.
Considero assim, que estas portarias são efectivamente inúteis, não fazendo mais do que repetir o que já estava anteriormente fixado, pelo que deveriam os preceitos a elas referentes ser revogados, até por uma questão de economia de procedimento. Até lá, contudo, continuará o Governo a ter de respeitar o dever de emitir as (in)competentes portarias.
Dito isto, chegamos ao ponto fulcral deste texto, que se prende com os, já há algum tempo discutidos, problemas de admissibilidade destes contratos, em especial os de adaptação ambiental, à luz da CRP e do princípio da legalidade. Em causa estará o Art.112.º/6 da Constituição, segundo o qual “nenhuma lei pode criar outras categorias de actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos.” Ora, o contrato de adaptação vem precisamente derrogar o regime ambiental fixado, pela via negocial, se bem que com um âmbito limitado às entidades celebrantes e às empresas eventualmente aderentes.
Aliás, sendo a própria CRP que proíbe estas derrogações de actos normativos, nem procederia o argumento de se tratar de contratos autorizados por lei. Outro argumento que poderia ser invocado em defesa dos contratos, seria o de se tratar de contratos com objecto passível de acto administrativo. Ainda assim, este não procederia, visto que mesmo um acto unilateral com este conteúdo continuaria a ser violador de normas constitucionais. Maria Fernanda Maçãs parece ter um entendimento diferente em relação a este ponto, sem contudo, deixar de referir que mesmo estes contratos não podem ser usados ela Administração como um meio de fuga relativamente às disposições legais em vigor, ou de princípios jurídicos cuja incidência não está dependente da forma de actuação escolhida. A Administração está, em suma, vinculada aos mesmos princípios e regras a que estaria se estivesse em causa um acto unilateral.
Como se resolve, então, esta questão?
Conforme muito se tem referido, estão aqui em confronto, por um lado, princípios de constitucionalidade, legalidade e tipicidade de forma de actos e, por outro, eficácia, participação e colaboração dos particulares e tutela da confiança destes. O Prof. Vasco Pereira da Silva defende nesta situação que, não sendo admissíveis contratos que violem aqueles princípios, não se justifica o liminar afastamento dos contratos de adaptação ambiental, devendo sim haver um cuidado de delimitação do seu âmbito no nosso ordenamento jurídico, sendo de resto acompanhado nesta posição, por outros autores, como é o caso de Mark Kirkby, para quem estes contratos deveriam ser encarados numa perspectiva residual ou marginal, relativamente a outros instrumentos da actuação administrativa ambiental.
No entanto, o Professor não se fica por aqui, vindo mesmo a considerar que, além de ser admissível a celebração destes contratos no domínio correspondente à margem de decisão da Administração, pode ainda ser admissível essa celebração fora dos limites legais, a título excepcional e mediante algumas condições. Essas condições seriam o de tal encontrar cabimento na previsão legislativa, não corresponder a uma situação de fraude à Constituição ou à lei, e não colocar em causa os princípios fundamentais da actuação administrativa, ou seja, os princípios da igualdade, proporcionalidade e imparcialidade.
Uma tal proposta carece de uma adequada defesa. E o Professor encontra-a naquilo que considera ser o espírito do sistema, subjacente à disposição do Art.112.º/6 da CRP, destinando-se esta norma a evitar fugas à hierarquia dos actos administrativos, pelo que se o contrato de adaptação ambiental fosse um mecanismo de aplicação da lei, nos termos por ela estabelecidos, e não houvesse essa situação de fraude, não haveria inconstitucionalidade.
Às condições referidas, são por fim acrescentadas mais duas: Primeiro, a de ser possível considerar que a lei fixadora dos limites consagrava dois regimes jurídicos, ou seja, o geral, desde logo aplicado e um especial, apenas parcialmente determinado pela lei, e que poderia ser aplicado apenas mediante contratação. Segundo, a de esse regime especial estar sempre limitado por regras de competência, de fim, e pelos princípios fundamentais acima referidos, sendo a esse respeito de destacar os Arts.3.º e ss do CPA e 266.º da CRP.
Em relação a este aspecto, cumpre-me fazer algumas considerações.
Em primeiro lugar, considero que qualquer caso de contratação, no âmbito do qual se verifique um confronto entre os princípios contrapostos terá necessariamente de ser analisado individualmente, se bem que à luz do entendimento que se entender defender.
Em segundo lugar, considero também, e em concordância com o Prof. Vasco Pereira da Silva, que sem prejuízo do indesmentível valor dos princípios constitucionais em causa, os contratos de adaptação ambiental prosseguem, também eles, alguns valores de elevada relevância, relevância esta que, conforme refere Maria Fernanda Maçãs, têm aumentado consideravelmente no decorrer das últimas décadas. Por estes motivos, e considerando que não estamos perante princípios e valores incompatíveis de forma absoluta, penso que pode e dever haver uma certa margem de conformação entre eles.
Neste sentido, penso que o Prof. Vasco Pereira da Silva faz uma interpretação adequada daquilo que é o espírito da lei, no que diz respeito ao Art.112.º/6 da CRP. No fundo, é precisamente a defesa contra fugas à hierarquia dos actos de normativos que esta norma visa acautelar. E os contratos de que aqui tratamos são, ou pelo menos devem ser, instrumentos pelos quais a Administração procura a defesa de valores ambientais, de uma forma que permita beneficiar não apenas a si, mas também aos particulares contratantes, comparativamente à pura imposição de normas por via unilateral.
Certamente que poderá, como em qualquer área do Direito, haver uma tentação de prosseguir fins menos adequados, contornando aquelas que são as grandes orientações do ordenamento jurídico. Exactamente por este motivo, deve certamente haver um apertado e rigoroso controlo sobre as condições mediante as quais se permite a celebração destes contratos, especialmente em condições que se afastam dos limites legais. Para esse efeito, penso que o entendimento de Prof. Vasco Pereira da Silva relativo a estas condições é bastante adequado e consciente.
Não há dúvida que os contratos de adaptação ambiental são prática cada vez mais enraizada no nosso Direito do Ambiente, e ainda bem. Os propósitos que defendem e os benefícios que trazem justificam bem a sua admissão, quando realizados de forma correcta.


Bibliografia:
- KIRKBY, Mark Bobela-Mota, Os Contratos de Adaptação Ambiental, Lisboa, AAFDL, 2001;
- MAÇÃS, Maria Fernanda, Os Acordos Sectoriais como um Instrumento da Política Ambiental, in Revista do CEDOUA, 5, ano III, 2000;
- SILVA, Vasco Pereira da, Verde Cor de Direito – Lições de Direito do Ambiente, Coimbra, Almedina, 2002



Bruno Girão, nº 20851

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