Concluindo
as nossas aventuras pelo mundo do Direito do Ambiente, trago aqui hoje uma
pequena reflexão sobre os contratos de adaptação e promoção ambiental, mais
concretamente no delicado aspecto da sua admissibilidade constitucional.
Contudo,
o facto é que ainda antes das dúvidas sobre a admissibilidade deste tipo de
contratos, já a própria actividade contratual da Administração Pública era alvo
de algumas questões. Por este motivo, começarei com uma breve abordagem desse
ponto.
Conforme
aponta o Prof. Vasco Pereira da Silva, esta prática nem sempre foi tão
normalmente admitida entre nós. Pelo contrário, foi no passado olhada com
desconfiança pela doutrina clássica, que tinha dificuldade em conciliar a ideia
de consenso com o entendimento da Administração enquanto poder. Também Maria
Fernanda Maçãs faz referência a este ponto, lembrando que as relações
jurídico-administrativas eram aquelas que pressupunham que a Administração se
apresentasse numa posição de autoridade.
Contudo,
o facto é que, com o passar do tempo e a evolução dos modelos administrativos,
o recurso a formas contratuais tornou-se cada vez mais uma prática corrente,
com claros benefícios, em comparação com situações de simples imposição
unilateral de normas, por via de actos administrativos, dos quais se tornaram
alternativa. A Prof. Maria João Estorninho vem inclusivamente apontar uma
possível aproximação entre os vários contratos da Administração Pública, uma
vez que o contrato administrativos, reconhecidamente, não era “tão exorbitante quanto isso”, e os
contratos privados da Administração eram, apesar de todo, um pouco diferentes
daqueles celebrados entre particulares.
Este
crescente fenómeno de contratualização veio a ter incidências também sobre o
Direito do Ambiente, sob as mais diversas formas. Caracterizado, como é, por
alguma complexidade e contraposição entre interesses públicos e privados,
dificilmente aconteceria o contrário. Os contratos de promoção e adaptação
ambiental, que aqui abordarei, são precisamente formas contratuais de recurso
bastante comum. A eles encontramos referência no D.L nº236/98, de 1 de Agosto,
que estabelece as Normas sobre Qualidade da Água, nos seus Artigos 68.º e 78.º,
respectivamente.
Previstos
no mesmo diploma, trata-se de contratos diferentes, com fim, objecto, sujeitos,
fiscalização e sanções diferentes.
Os
referidos Artigos, nos seus respectivos primeiros números, prevêem os fins
destes contratos, bem como os seus sujeitos. No entanto, cumpre fazer a
ressalva de que estes não são necessariamente os únicos sujeitos da relação
contratual, uma vez que, depois de celebrado o acordo, a ele podem vir a aderir,
em momento posterior novas entidades, nos termos dos nº4 destes Artigos, motivo
pelo qual estes contratos têm a natureza de contratos de adesão. Já os objectos
dos contratos surgem previstos nos nº3. A nível de fiscalização e sanções, por
outro lado, os dois regimes são praticamente idênticos, tal como assinalam os
nº6, 7 e 8 dos respectivos Artigos.
Findos
os aspectos que decorrem claramente da lei, estes contratos levantam algumas
questões às quais cumpre atender.
A
questão das suas naturezas bilaterais e de contratos administrativos não
oferece, à partida grandes dificuldades, havendo uma grande concordância na
doutrina relativamente a estes pontos. Em qualquer momento destes contratos,
desde a sua negociação até à adesão de novas empresas, existe sempre um acordo
de vontades. Por outro lado, existe sempre uma entidade pública envolvida na
contratação, criando direitos e deveres de direito público. De resto, o Prof
Vasco Pereira da Silva socorre-se dos Artigos 148.º e 178.º do CPA para
sustentar, perante estes acordos, a formação ou modificação de relações
jurídicas administrativas e a formação de contratos administrativos,
respectivamente.
Ainda
a propósito do CPA, o Professor considera ainda, atendendo ao Art.179.º/1, que
fica resolvida a questão da admissibilidade da celebração de contratos, pela
consagração da alternatividade entre os actos e contratos administrativos.
Pelos
motivos acima apresentados, o Prof. Vasco Pereira da Silva acaba por criticar,
com razão, na minha opinião, a opção do legislador por submeter as normas de
descarga acordadas, em ambos os contratos, a fixação por via de posterior portaria,
conforme se verifica pelos Arts.68.º/9 e 78.º/10. Considera que esta
intervenção do Governo, em momento posterior ao contrato, não vem alterar nada
em relação ao conteúdo ou eficácia de uma relação jurídica administrativa que,
afinal, já existe. Assim, propõe uma interpretação dos preceitos, segundo os
quais estas portarias não fixam coisa nenhuma, limitando-se a, no máximo, publicitar
os resultados alcançados por via bilateral.
Pessoalmente,
devo dizer que, apesar do seu inegável mérito, não acompanho completamente a
posição do Prof. Conforme acima referi, a crítica que é feita à existência
destas disposições parece-me fundada. Realmente, não vejo nenhuma utilidade
específica em exigir a intervenção posterior ao contrato, por parte do Governo.
É algo revelador de alguma desconfiança do legislador em relação ao seu próprio
mecanismo, mas também de algum excesso de zelo. No entanto, a interpretação proposta
pelo Prof não me parece a mais indicada. Se é certo, por um lado, que a
portaria pode ter a eventual utilidade de publicitar os resultados alcançados,
por outro não é assim tão simples ignorar ou dispensar o que resulta muito
claramente da letra da lei, por mais criticável e despida de utilidade que esta
seja, quando fala em fixação de normas, mantendo as portarias com uma função
meramente decorativa.
Considero
assim, que estas portarias são efectivamente inúteis, não fazendo mais do que
repetir o que já estava anteriormente fixado, pelo que deveriam os preceitos a
elas referentes ser revogados, até por uma questão de economia de procedimento.
Até lá, contudo, continuará o Governo a ter de respeitar o dever de emitir as
(in)competentes portarias.
Dito
isto, chegamos ao ponto fulcral deste texto, que se prende com os, já há algum
tempo discutidos, problemas de admissibilidade destes contratos, em especial os
de adaptação ambiental, à luz da CRP e do princípio da legalidade. Em causa
estará o Art.112.º/6 da Constituição, segundo o qual “nenhuma lei pode criar
outras categorias de actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o
poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar
qualquer dos seus preceitos.” Ora, o contrato de adaptação vem precisamente derrogar
o regime ambiental fixado, pela via negocial, se bem que com um âmbito limitado
às entidades celebrantes e às empresas eventualmente aderentes.
Aliás,
sendo a própria CRP que proíbe estas derrogações de actos normativos, nem
procederia o argumento de se tratar de contratos autorizados por lei. Outro argumento
que poderia ser invocado em defesa dos contratos, seria o de se tratar de
contratos com objecto passível de acto administrativo. Ainda assim, este não
procederia, visto que mesmo um acto unilateral com este conteúdo continuaria a
ser violador de normas constitucionais. Maria Fernanda Maçãs parece ter um
entendimento diferente em relação a este ponto, sem contudo, deixar de referir
que mesmo estes contratos não podem ser usados ela Administração como um meio
de fuga relativamente às disposições legais em vigor, ou de princípios
jurídicos cuja incidência não está dependente da forma de actuação escolhida. A
Administração está, em suma, vinculada aos mesmos princípios e regras a que
estaria se estivesse em causa um acto unilateral.
Como
se resolve, então, esta questão?
Conforme
muito se tem referido, estão aqui em confronto, por um lado, princípios de
constitucionalidade, legalidade e tipicidade de forma de actos e, por outro,
eficácia, participação e colaboração dos particulares e tutela da confiança
destes. O Prof. Vasco Pereira da Silva defende nesta situação que, não sendo
admissíveis contratos que violem aqueles princípios, não se justifica o liminar
afastamento dos contratos de adaptação ambiental, devendo sim haver um cuidado
de delimitação do seu âmbito no nosso ordenamento jurídico, sendo de resto
acompanhado nesta posição, por outros autores, como é o caso de Mark Kirkby,
para quem estes contratos deveriam ser encarados numa perspectiva residual ou
marginal, relativamente a outros instrumentos da actuação administrativa
ambiental.
No
entanto, o Professor não se fica por aqui, vindo mesmo a considerar que, além
de ser admissível a celebração destes contratos no domínio correspondente à
margem de decisão da Administração, pode ainda ser admissível essa celebração
fora dos limites legais, a título excepcional e mediante algumas condições. Essas
condições seriam o de tal encontrar cabimento na previsão legislativa, não
corresponder a uma situação de fraude à Constituição ou à lei, e não colocar em
causa os princípios fundamentais da actuação administrativa, ou seja, os
princípios da igualdade, proporcionalidade e imparcialidade.
Uma
tal proposta carece de uma adequada defesa. E o Professor encontra-a naquilo
que considera ser o espírito do sistema, subjacente à disposição do Art.112.º/6
da CRP, destinando-se esta norma a evitar fugas à hierarquia dos actos
administrativos, pelo que se o contrato de adaptação ambiental fosse um
mecanismo de aplicação da lei, nos termos por ela estabelecidos, e não houvesse
essa situação de fraude, não haveria inconstitucionalidade.
Às
condições referidas, são por fim acrescentadas mais duas: Primeiro, a de ser
possível considerar que a lei fixadora dos limites consagrava dois regimes
jurídicos, ou seja, o geral, desde logo aplicado e um especial, apenas
parcialmente determinado pela lei, e que poderia ser aplicado apenas mediante
contratação. Segundo, a de esse regime especial estar sempre limitado por
regras de competência, de fim, e pelos princípios fundamentais acima referidos,
sendo a esse respeito de destacar os Arts.3.º e ss do CPA e 266.º da CRP.
Em
relação a este aspecto, cumpre-me fazer algumas considerações.
Em
primeiro lugar, considero que qualquer caso de contratação, no âmbito do qual
se verifique um confronto entre os princípios contrapostos terá necessariamente
de ser analisado individualmente, se bem que à luz do entendimento que se
entender defender.
Em
segundo lugar, considero também, e em concordância com o Prof. Vasco Pereira da
Silva, que sem prejuízo do indesmentível valor dos princípios constitucionais
em causa, os contratos de adaptação ambiental prosseguem, também eles, alguns
valores de elevada relevância, relevância esta que, conforme refere Maria
Fernanda Maçãs, têm aumentado consideravelmente no decorrer das últimas
décadas. Por estes motivos, e considerando que não estamos perante princípios e
valores incompatíveis de forma absoluta, penso que pode e dever haver uma certa
margem de conformação entre eles.
Neste
sentido, penso que o Prof. Vasco Pereira da Silva faz uma interpretação adequada
daquilo que é o espírito da lei, no que diz respeito ao Art.112.º/6 da CRP. No fundo,
é precisamente a defesa contra fugas à hierarquia dos actos de normativos que
esta norma visa acautelar. E os contratos de que aqui tratamos são, ou pelo
menos devem ser, instrumentos pelos quais a Administração procura a defesa de
valores ambientais, de uma forma que permita beneficiar não apenas a si, mas
também aos particulares contratantes, comparativamente à pura imposição de
normas por via unilateral.
Certamente
que poderá, como em qualquer área do Direito, haver uma tentação de prosseguir
fins menos adequados, contornando aquelas que são as grandes orientações do ordenamento
jurídico. Exactamente por este motivo, deve certamente haver um apertado e
rigoroso controlo sobre as condições mediante as quais se permite a celebração
destes contratos, especialmente em condições que se afastam dos limites legais.
Para esse efeito, penso que o entendimento de Prof. Vasco Pereira da Silva relativo a estas condições é bastante adequado e consciente.
Não
há dúvida que os contratos de adaptação ambiental são prática cada vez mais enraizada
no nosso Direito do Ambiente, e ainda bem. Os propósitos que defendem e os
benefícios que trazem justificam bem a sua admissão, quando realizados de forma
correcta.
Bibliografia:
- KIRKBY, Mark Bobela-Mota, Os Contratos de Adaptação Ambiental,
Lisboa, AAFDL, 2001;
- MAÇÃS, Maria Fernanda, Os Acordos Sectoriais como um Instrumento da
Política Ambiental, in Revista do
CEDOUA, 5, ano III, 2000;
- SILVA, Vasco Pereira da, Verde Cor de Direito – Lições de Direito do
Ambiente, Coimbra, Almedina, 2002
Bruno Girão, nº 20851
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