1 de junho de 2014

O Ambiente enquanto bem jurídico-penal, susceptível de legítima defesa
        
        
         Com este trabalho, pretendemos estabelecer uma posição quanto à existência ou inexistência de uma tutela penal relativa aos danos ambientais. No caso de existir, iremos definir as particularidades do regime penal. Este regime tendo sido sobretudo pensado para uma aplicação com maior incidência nas pessoas singulares, demonstra-se digno de investigação no tema supra referido.
         Analisaremos também a questão da legítima defesa, nomeadamente os seus pressupostos. Discute-se se o Direito do Ambiente será um dos campos de aplicação da legítima defesa.

O Bem jurídico

         O nosso sistema de direito decorre em torno da pessoa humana. Serão, assim, considerados bens jurídicos susceptíveis de tutela penal todos os elementos essenciais ao desenvolvimento da pessoa humana numa certa realidade social.

         O direito penal tem sofrido uma evolução ao longo dos tempos, tendo consequentemente alargado a sua tutela.

         Poderá o meio ambiente ser tutelado pelo direito penal? Em que termos? A resposta a estas questões não será tarefa fácil, uma vez que é difícil definir o conceito indeterminado meio ambiente. De modo a superarmos esta dificuldade, torna-se imperativo sujeitar o direito penal do ambiente à teoria do bem jurídico.

         Os bens jurídicos poderão ser individuais ou colectivos. Este últimos, de titularidade difusa, levantam problemas de legitimidade. Dentro das linhas doutrinárias que se ocuparam desta temática, destacamos duas - dualistas e monistas.
Os defensores da linha dualista entendem que os bens jurídicos individuais e coletivos são autónomos entre si, proibindo a recondução dos bens colectivos a bens individuais para que aqueles sejam válidos.[1]


         Existem duas linhas doutrinárias que se ocuparam desta temática: as dualistas e as monistas.
         Os autores dualistas compreendem que os bens jurídicos individuais e colectivos são autónomos entre si. Desta forma proíbe-se a recondução dos bens colectivos a bens individuais para que sejam válidos.

         Os autores monistas invocam duas vertentes - monista-estatal e monista-pessoal.

         A doutrina monista-estatal, defende que todos os bens jurídicos emanam do estado, da sociedade ou da colectividade, sendo que os bens jurídicos individuais são mera decorrência dos bens jurídicos colectivos, sendo portanto de igual ou inferior importância.
         A doutrina monista-pessoal entende que o bem jurídico tem a sua raiz na pessoa humana e consequentemente os bens colectivos decorrem das características de sociabilidade do ser humano, com fundamento nas necessidades pessoais.


Tutela Penal      

Identificadas as várias posições relativas ao bem coletivo ao ambiente infere-se que estando em causa um bem jurídico independentemente da sua categorização este é susceptível de tutela penal.

Como já dito anteriormente, o direito penal tem sofrido uma evolução ao longo dos tempos, tendo consequentemente alargado a sua tutela a novas condutas objeto de criminalização. Este alargamento traduziu-se num crescente interesse na penalização de condutas que frustrem interesses não apenas pessoais ou sociais, mas também interesse difusos. Vejamos alguns exemplos:
- o meio ambiente, o sistema financeiro, a ordem económica, os interesses do consumidor, entre outros.

         Nos termos dos artigos 274.º, 278.º, 279.º e 280.º do Código Penal, encontram-se penalizações de condutas e danos cometidos contra o ambiente.
         O crime de poluição com perigo comum, estabelecido no artigo 280.º Código Penal, compreende a realização de uma das condutas do artigo 279.º C.P. É, no entanto, exigido um requisito adicional relacionado com a prova, isto é, exige-se um nexo de causalidade entre a conduta do artigo 279.º e a criação ou aumento de um dano para a vida ou integridade física de outrem. Em concreto, aqui, não existe um crime ambiental autónomo, pois o ambiente apenas adquire uma proteção penal reflexa através da tutela de bens jurídicos puramente pessoais, como é o exemplo da integridade física.

         No Código Penal em vigor antes da reforma de 2007, a maioria dos crimes contra o ambiente que possuíam tutela penal, apenas a possuíam de forma reflexa, como no caso supra analisado do artigo 279.º do Código Penal. Com a entrada da lei 59/2007, muitos destes crimes contra a esfera ambiental passaram de uma tutela penal reflexa para um tutela autónoma, não sendo necessário o requisito da prova do nexo causal, para que fosse punível. É o caso do crime de incêndio florestal. Inicialmente protegia-se o bem jurídico pessoal de quem sofresse danos provocados pelo incêndio, atualmente basta a mera tentativa para que seja punível, não sendo necessário que haja vítimas nem a criação de um perigo potencial.
         Perante estas alterações, consequência da evolução do Código Penal, acreditamos que o artigo 279.º do Código Penal poderá futuramente conferir uma proteção autónoma ao ambiente.

Legítima Defesa


         A legítima defesa é um instituto consagrado no artigo 32.º do Código Penal.
         A legítima defesa é um mecanismo que permite ao lesado defender o seu direito (ou de terceiro), que esteja a ser violado. Já nos casos de legítima defesa preventiva é requisito bastante a mera probabilidade ou iminência de perigo, para que possa existir o direito à defesa.
         A legítima defesa está sujeita à cumulação dos seus pressupostos:
         1) A existência de uma agressão,
         2) Atual e,
         3) Ilícita
         4) Contra interesses juridicamente protegidos do agente ou do terceiro,
         5) Meio necessário

Analisemos estes pressupostos à luz da defesa do ambiente:

         1) Existência de uma agressão. Tanto a agressão como a posterior defesa são atos baseados na vontade do agente - atos volitivos - atos unicamente humanos. Não constitui causa de exclusão de ilicitude uma reação defensiva quando não exista uma prévia conduta lesiva de direitos, ou seja, só pode existir legítima defesa contra ações ou omissões de comportamentos humanos.


         2) Atualidade. A agressão é iminente quando o bem jurídico se encontra imediatamente ameaçado.[2]A atualidade ou a iminência da agressão justifica a possibilidade de uma reação rápida e potencialmente lesiva de bens jurídicos do agressor ou de terceiro. Admite-se a defesa da agressão iminente, por se entender que a possibilidade de o agressor lesar um bem jurídico-penal, se encontra já na esfera do agressor, podendo este a qualquer momento efetivar o dano, uma vez que é inequívoca a vontade do agressor de praticar o facto ilícito típico, e dispõe já dos meios necessários para o fazer. Há situações em que se  torna complexo determinar o momento em que a agressão se considera atual, por este motivo a doutrina recorre ao regime da tentativa, presente nos artigos 22º e 23º do código penal, aplicando o regime por analogia quanto aos atos de execução.

         3) Ilicitude. Este pressuposto não permite a defesa de uma agressão lícita, ou seja, se um sujeito atua ao abrigo de uma cláusula de exclusão de ilicitude, não cai no âmbito da esfera subjetiva do agressor, que está a ser agredido, a possibilidade de reação[3]. É necessária a ilicitude, pois esta preenche o facto ilícito típico, levando a um desvalor da ação do agressor.

         4) Contra interesses juridicamente protegidos do agente ou do terceiro. Quanto ao que pode caber no conceito de "interesses juridicamente protegidos"; FIGUEIREDO DIAS defende um conceito amplo, incluinndo os bens jurídicos supra-individuais ou universais. ROXIN defende a não inclusão dos bens jurídicos da comunidade dentro deste elenco, só estando em causa os bens jurídicos individuais.

         5) Meio necessário. Deve existir necessidade de defesa, no sentido de ser impossível recorrer a forças de segurança pública que pudessem garantir a não lesão do bem jurídico em perigo. Ao atuar em legítima defesa o meio empregue não deve lesar mais que o necessário para que a agressão cesse, isto é, o meio idóneo menos lesivo para a esfera do agressor.
Em boa verdade, os requisitos para que se possa afirmar a existência da possibilidade de actuar ao abrigo de uma cláusula de exclusão de ilicitude – a legítima defesa – não se acham diferentes quando está em causa a defesa de um bem colectivo, como o ambiente, nos termos do artigo 66.º CRP.

Vejamos o seguinte exemplo:

Na serra de Sintra numa manhã quente de Agosto, Ana, uma mulher de porte pequeno, encontrava-se a observar os típicos eucaliptos da região, com uns binóculos potentes, quando se depara que ao longe, estão  dois homens encapuçados, munidos de dois jerricans. Ao aproximar-se sente um forte cheiro a gasolina e repara que há um terceiro homem a preparar-se para acender uma fogueira. Percebendo que os homens estavam a planear pegar fogo à serra, pondo em perigo não só a sua vida como a fauna e flora da região, Ana, que era professora de tiro, saca da sua Magnum 44, e aponta para o homem que iria acender a fogueira obrigando-o sob ameaça, a prender os seus companheiros de crime, amarrando-os contra uma árvore e posteriormente, Ana ao amarrar o terceiro sujeito, este foge violentamente e acende um isqueiro, Ana reage dando-lhe um tiro na mão, impedindo que este acenda o isqueiro e consequentemente provoque um incêndio.
         Nesta situação Ana atuou ao abrigo da legítima defesa. Ana estava a defender o seu bem jurídico vida e integridade física, bem como o bem colectivo do ambiente 66º CRP, visto que existiu: uma agressão atual e ilícita, que consubstanciam o disposto no artigo 274º CP. Quanto aos meios empregues por Ana, o meio ideal seria o recurso às forças de autoridade, nos termos do artigo 31.º, c) do CP, mas visto que existia uma impossibilidade de acordo com o 21º CRP e o instituto da legitima defesa mencionado supra não se consideram excessivo são admissíveis à luz do princípio da necessidade.

         O que está em causa no âmbito da legítima defesa ambiental é a tutela de interesses protegidos do agente ou de terceiro, nos termos do artigo 32º CP. Cabe confirmar que o terceiro poderá ser considerado também a colectividade, titular do direito ao ambiente.

Conclusão


         Com a realização deste trabalho procurámos demonstrar a relevância do ambiente enquanto bem jurídico-penal, para a existência de uma maior qualidade de vida individual e colectiva, para o bem estar de gerações presentes e futuras. Considerando a sua defesa um direito fundamental, a sua proteção pelo direito penal é justificável principalmente quando haja ineficácia de outros ramos do direito, no entanto deve-se sublinhar que esta só é admissível em ultima ratio.
         Deste modo, considerando o ambiente um interesse da colectividade e portanto difuso, por ser entendido pela sua natureza indivisível considera-se um direito transindividual uma vez que a todos pertence, o que culmina indubitavelmente num direito à sua defesa, característico de todos os direitos fundamentais.
         Com efeito, através do exemplo supra vimos que não há razões jurídico-dogmáticas que neguem a Ana o direito de defesa ao ambiente perante uma agressão se bem que Ana teria de justificar a impossibilidade de recurso a outros meios para afastar a agressão.


Bibliografia

CAVALEIRO DE FERREIRA, Manuel, Lições de Direito Penal, Volume I, Editorial Verbo, 1987

COSTA, Helena Regina, Protecção Penal Ambiental

FIGUEIREDO DIAS, Jorge de, Direito Penal

GOMES CANOTILHO, José Joaquim,  Introdução ao Direito do Ambiente

SILVA DIAS, Augusto, A estrutura dos direitos ao ambiente e à qualidade dos bens de consumo e a sua repercussão na teoria do bem jurídico e na das causas de justificação, in Jornadas de homenagem ao Prof. Doutor Cavaleiro de Ferreira, Lisboa, 1995, pp. 181 - 234 .

SOUSA MENDES, Paulo de, Vale a pena o Direito Penal do Ambiente?, Lisboa: AAFDL, 2000

NEVES, Rita Castanheira, O Ambiente no Direito Penal

PEREIRA DA SILVA, Vasco, Verde cor de Direito:  lições de Direito do Ambiente, Coimbra, 2003




Bárbara do Amaral Correia, n.º 20681, subturma 2



[1] O Professor Figueiredo Dias esclarece: “ existem bens jurídicos penais individuais e supraindividuais, não tendo estes, para ser legítimos, de se reconduzir àqueles (...) Neste sentido os bens supraindividuais, neles incluídos os bens jurídicos ecológicos, gozam de verdadeira autonomia”.
[2] Na opinião de FERNANDA PALMA , a agressão começa logo com a tentativa. CAVALEIRO DE FERREIRA aponta que " a agressão não existe se ainda não é iminente o perigo de se transformar em execução e não é já agressão quando a atualidade da agressão cessou e se não verifica o perigo da sua continuação ou ulterior desenvolvimento."
[3]  FIGUEIREDO DIAS, "quem atua ao abrigo de uma causa de justificação é concedido um verdadeiro direito de intervenção na esfera de terceiros."

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