1 de junho de 2014

Avaliação Ambiental Estratégica: Qual o seu objectivo

A Avaliação Ambiental Estratégica consiste num processo integrado no procedimento de elaboração de planos e programas que se destina a incorporar uma série de valores ambientais na decisão final desses mesmos planos e programas.
Face ao regime de AIA pergunta-se qual a utilidade deste instrumento:
A avaliação ambiental estratégica antecipa a avaliação ambiental na medida em que se aplica a planos e programas, permitindo que sejam tomadas em consideração preocupações ambientais, num momento em que estão ainda em aberto várias opções. Adiciona um nível preventivo prévio à AIA e possibilita um enquadramento dos projectos, sujeitos a esta avaliação mais adequado, tendo em conta que os condicionamentos impostos pelos planos e programas foram já analisados.
Enquanto o procedimento de AIA consiste num procedimento especial, destinado à consideração autónoma das consequências ambientais de um projecto1.As finalidades do procedimento de AIA concretizam-se a curto-médio prazo, o processo baseia-se na avaliação do impacte do projecto concreto2, pelo contrário a AAE tem uma dimensão a longo prazo e assume alguma incerteza tendo em conta que as opções previstas nos planos podem nunca vir a ser de facto executadas.
Embora exista completa autonomia procedimental entre estes dois instrumentos, observamos que existe também uma relação de complementaridade entre eles. A AAE é um instrumento essencial para tornar a própria AIA mais eficaz3. O procedimento de AIA realiza-se num momento no qual a possibilidade de tomar diferentes opções são restritas. Muitas vezes a decisão acerca das características de um determinado projecto já se encontra condicionado por planos e programas nos quais o próprio projecto se enquadra.

O objectivo da AAE é portanto que as consequências ambientais de um plano ou programa, produzido por uma entidade no uso de poderes públicos, sejam previamente analisadas antes da sua adopção.
Relativamente à distinção entre planos e programas, estes conceitos parecem reconduzir-se a uma ideia comum. Todavia, o Guia de Boas Práticas para a Avaliação Ambiental Estratégica parece oferecer uma definição para cada um deles. Um plano será o resultado de um processo de planeamento e gestão, consiste numa proposta de acção com opções e medidas para a afectação de recursos de acordo com a sua aptidão e disponibilidade, segundo a orientação e implementação de políticas globais. O programa trata-se de uma agenda organizada com objectivos na qual existe uma especificação de programas definidos no quadro de políticas e planos relevantes.
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Algumas considerações relativamente ao regime da AAE:
O âmbito de aplicação do regime de AAE consta do art 3º do DL 232/2007 que remete na alínea a) para os anexos I e II do DL151-B/2013, relativo ao procedimento de AIA. Concluímos assim que o objectivo é exactamente que os projectos sujeitos a AIA cumpram as considerações estabelecidas pelos planos e programas sujeitos a AAE.
O âmbito de aplicação da avaliação ambiental estratégia é no entanto, muito mais abrangente do que possa parecer à primeira vista, constando também da alínea b) e c) do nº3 do DL 232/2007, sendo que a aliena c) representa uma cláusula aberta.

O alcance da informação e o âmbito da avaliação compete à entidade responsável pela elaboração dos planos ou programa art5ºnº1.

Instrumento relevante no procedimento de AEE é o relatório ambiental. O relatório ambiental é elaborado pela entidade responsável pelo plano ou programa, nele se identifica, descreve e avalia os eventuais efeitos no ambiente resultantes da aplicação do plano e programa e as suas alternativas razoáveis tendo em conta o âmbito de aplicação territorial dos mesmos4. O procedimento de AAE consiste num modelo integrado que envolve a participação de entidades com responsabilidades em matérias ambientais e dos interessados em geral. A fase de consultas permite trazer para o plano um conjunto de diversas considerações. Por um lado, as consultas são dirigidas antes da aprovação do plano ou programa e do relatório ambiental às entidades às quais em virtude das suas responsabilidades ambientais especificas, seja susceptível de interessar os efeitos ambientais resultantes da sua aplicação. Por outro lado há também uma fase de consulta publica dirigida à recolha de observações e sugestões de associações ou meros interessados. Também ao nível europeu existe possibilidade de consulta de um plano ou programa veja-se o nº1 do art8º.
Os resultados da AAE são ponderados na elaboração final do plano ou programa mas não são vinculativos art9º e 10ºnº1 iv). O objectivo da AAE é garantir que os efeitos ambientais são tomados em consideração na definição do plano, não faria no entanto sentido que um instrumento com um âmbito tão abrangente, e que permite o estudo de múltiplas soluções fosse vinculativo.
Finalmente, cabe à entidade responsável elaborar e disponibilizar uma declaração ambiental art10ºnº1.
Após a aprovação de um plano ou programa segue-se ainda um trabalho de monitorização e acompanhamento. A entidade responsável pela elaboração do plano ou programa verifica a aplicação das medidas previstas na declaração art11º nº1.
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Para concluir este comentário deixamos a seguinte ideia, a Avaliação Ambiental Estratégica com o seu objectivo de avaliar os efeitos de um plano ou programa no ambiente, desenvolvendo várias medidas adequadas à sua protecção e antecipando eventos que podem gerar lesão, mais não é do que uma concretização do princípio da prevenção.

 1-Vasco Pereira da Silva, Verde Cor de Direito- Lições de Direito do Ambiente, Coimbra, Almedina, 2002, pag 153.
2-Catarina Moreno Pina, Os Regimes de Avaliação de Impacte Ambiental e de Avaliação Ambiental Estratégica, Universidade de Lisboa-Faculdade de Direito,2009, pag 134.
3- Catarina Moreno Pina Os Regimes de Avaliação de Impacte Ambiental e de Avaliação Ambiental Estratégica, Universidade de Lisboa-Faculdade de Direito,2009, pag 138.
4- Tiago Sousa D”Alte; Miguel Assis Raimundo, O Regime de Avaliação Ambiental de Planos e Programas e a sua Integração no Edifício da Avaliação Ambiental, in RJUA, n.º 29/30, 2008, pag141.

 Referências:
ALTE, TIAGO SOUSA D`; RAIMUNDO MIGUEL ASSIS, O Regime de Avaliação Ambiental de Planos e Programas e a sua Integração no Edifício da Avaliação Ambiental, in RJUA, n.º 29/30, 2008.
PINA, CATARINA MORENO, Os Regimes de Avaliação de Impacte Ambiental e de Avaliação Ambiental Estratégica, Universidade de Lisboa-Faculdade de Direito,2009.
SILVA, VASCO PEREIRA DA, Verde Cor de Direito- Lições de Direito do Ambiente, 2º Reimpressão, Coimbra, Almedina,2005.



Maria Inês Cavaco
nº-21450 

Considerações sobre Contra-Ordenações Ambientais

                 Considerações sobre Contra-ordenações Ambientais*



   Como nos diz o Professor Vasco Pereira da Silva, é recente a tutela sancionatória ambiental, isto porque também é recente a consideração do ambiente como um bem jurídico objectivo fundamental e constitucionalmente protegido, nos termos do artigo 66º da Constituição da República Portuguesa, e como uma tarefa fundamental do Estado, de acordo com a previsão constitucional presente nas alíneas d) e e) do artigo 9º da Lei Fundamental.

   A tutela sancionatória dos ilícitos ambientais, levada a cabo através da via administrativa apresenta inúmeras vantagens, entre as quais são de destacar:
  • a possibilidade de aplicação de sanções a pessoas colectivas por adopção de um comportamento delitual que, ao facilitar a imputação objectiva do delito, permite amenizar as dificuldades relativas à apreciação do nexo de causalidade em matéria de ambiente. A responsabilização das pessoas colectivas, por infracções ao bem jurídico ambiente, tem sido, também, preconizada pela União Europeia, o que é evidenciado pelo artigo 6º da Directiva 2008/99/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de Novembro de 2008, transposta para o ordenamento jurídico português pela Lei 56/2011 de 15 de Novembro;
  • maior celeridade e eficácia na punição dos ilícitos ambientais, uma vez que o procedimento administrativo em comparação com o procedimento em sede de Tribunais judiciais, é bem mais simplista.

   Mas esta via administrativa de punição das contra-ordenações ambientais, em detrimento de uma tutela penal do Ambiente apresenta também algumas desvantagens:
  • ficam diminuídas as garantias de defesa do infractor, uma vez que o processo penal tem, desde logo, que respeitar as garantias de processo criminal constitucionalmente consagradas nos termos do artigo 32º da C.R.P., disposição a que não está igualmente obrigado a processo administrativo;
  • desconsideração da importância que se deve reconhecer aos ilícitos ambientais, uma vez preconizada na sociedade a ideia de que a tutela penal pune as condutas mais graves, ao passo que a tutela ambiental levada a cabo pela administração pune condutas de natureza bagatelar;
  • o facto de, pela natureza pecuniária da sanção administrativa, se poder considerar que estamos perante um mero “custo” inerente à actividade poluente e não uma verdadeira punição, comprometendo-se o efeito que se pretende dissuasor de comportamentos gravosos para o ambiente.

   A União Europeia parece estar também alerta para as vantagens que podem advir da tutela penal do Ambiente, tendo em conta os motivos elencados pela Professora Carla Amado Gomes:
  • o direito penal traduz, na sociedade, uma reprovação mais intensa, uma vez que na maioria dos casos culmina com a privação da liberdade, ao passo que o direito sancionatório de via administrativa se centra antes no pagamento de coimas;
  • o facto de, por vezes, os infractores não terem possibilidade de pagamento da coima acabando por sair impunes;
  • o facto de a cooperação entre os vários membros da União Europeia ser muito mais intensa a nível penal do que a nível administrativo, o que permitiria um melhor conhecimento e controlo da realidade ambiental, partindo da certa ideia de que os danos ambientais não se circunscrevem a uma determinada área e que constituem uma preocupação transfronteiriça;
  • o processo penal demonstra-se seguramente mais imparcial, uma vez que sendo um tribunal judicial a julgar, estará livre de interesses e de intervenção na apreciação da infracção.

   Parece então ser vantajoso equilibrar sanções penais com sanções de natureza administrativa, tendo em conta o caso concreto e a gravidade da conduta, a fim de se conseguir uma efectiva tutela do bem jurídico ambiente. É de reconhecer, neste âmbito, que um mesmo comportamento pode dar origem aos dois tipos de sanções. Veja-se o caso do nº 2 do artigo 47º da Lei de Bases do Ambiente (Lei 11/87, de 7 de Abril), que estipula que em caso de uma “mesma conduta constituir crime e contra-ordenação, será o infractor punido a título de crime, sem prejuízo da aplicação de sanções acessórias previstas para a contra-ordenação.”

   Independentemente do que se considere ser a melhor via sancionatória para a salvaguarda do bem jurídico ambiente, hoje o caminho eleito para a sua tutela é, sem dúvida, a via administrativa e isto decorre do facto de a maior parte dos ilícitos ambientais darem lugar a sanções de natureza administrativa, e só uma pequena parcela ser tipo objectivo de conduta criminosa e, portanto, dar origem a sanções penais, sendo que, mesmo nestas situações, se estará sempre dependente de considerações relativas à actuação da Administração. Veja-se, por exemplo, o caso do artigo 279º do Código Penal, relativo ao crime de poluição, que faz depender, no seu nº1, da violação de “disposições legais, regulamentares ou obrigações impostas pela autoridade competente em conformidade com aquelas disposições”, um elemento do tipo.

   Corrobora esta ideia a Professora Heloísa Oliveira quando diz que “as infracções ambientais são de natureza essencialmente administrativa: trata-se da violação de obrigações de obtenção de licenças ou autorizações, da violação de condições impostas pela autoridade administrativa (nomeadamente das condições anexas a licenças e autorizações deferidas); e, mais raramente, violação de obrigações materiais impostas directamente pela lei. Ou seja, a vasta maioria das infracções ambientais resultam da violação de obrigações perante a Administração ou que foram por esta impostas”.

   As contra-ordenações ambientais, cujo regime está consagrado na Lei-Quadro das Contra-Ordenações Ambientais, Lei 50/2006, de 29 de Agosto, com alteração e republicação datada de 31 de Agosto de 2009, pela Lei 89/2009, estão essencialmente a cabo de Autoridades Administrativas, organismo a quem compete legalmente a instauração, a instrução e a aplicação das sanções em matéria ambiental, nos termos do artigo 73º da referida Lei. Tem competência genérica, para os mesmos efeitos, o Inspector-Geral do Ambiente e do Ordenamento do Território, segundo o disposto pelo nº 1 do artigo 71º da mesma Lei.

   Podem ser de três tipos as contra-ordenações visadas estatuídas por esta lei: leves, graves e muito graves. Isto é-nos ditado desde logo pelo artigo 21º da referida lei.

   Esta graduação classificativa de gravidade, determinada conforme a intenção preventiva do legislador face ao caso tipificado na lei, nos termos do artigo 23º da Lei 89/2009, faz variar a coima aplicável consoante se trate de uma pessoa singular ou de uma pessoa colectiva e do seu respectivo grau de culpa.





Contra-ordenação

Pessoa singular

Pessoa colectiva

dolo

negligência

dolo

negligência

leve

€ 400 a
€ 2000

€ 200 a
€ 1000

€ 6000 a
€ 22 500

€ 3000 a
€ 13 000

grave

€ 6000 a
€ 20 000

€ 2000 a
€ 10 000

€ 30 000 a
€ 48 000

€ 15 000 a
 € 30 000

muito grave

€ 30 000 a
€ 37 500

€ 20 000 a
€ 30 000

€ 200 000 a
€ 2 500 000

€ 38 000 a
€ 70 000


               









               
                








          

   
   Podem ser, para além das coimas, aplicadas por lei, no âmbito de um processo contra-ordenacional, relativamente a infracções graves e muito graves, e nos termos do artigo 29º da Lei 89/2009, sanções acessórias cujo conteúdo se determina, na maioria dos casos, pela determinação de uma acção negativa ou de “non facere” imposta ao infractor, como por exemplo “interdição do exercício de funções …”, “privação do direito de …” ou “encerramento de estabelecimento …”.

   Estas sanções estão previstas no artigo 30º da mencionada Lei, e a sua aplicação depende da verificação de pressupostos determinados, de acordo com o previsto no artigo 31º do mesmo diploma legal.

   Tanto as coimas como as sanções acessórias serão as consequências jurídicas advindas da decisão no âmbito de um processo contra-ordenacional de carácter administrativo

   Mas, por motivos de precaução, quer relativos à instrução do processo, quer relativos à salvaguarda de bens jurídicos como a saúde, a segurança de pessoas ou de bens e o ambiente, podem ser estabelecidas medidas anteriores à decisão da causa, nos casos previstos no artigo 41º da Lei 89/2009. Estas medidas cautelares têm carácter provisório, facto constatável pelo nº 2 do mesmo artigo 41º, que determina o momento da sua caducidade.

   Em sede de regime de contra-ordenações ambientais, e quando haja lugar a uma infracção de tipo leve, pode dar-se lugar ao processo sumaríssimo, presente no artigo 56º da Lei 89/2009. Neste tipo de processo, informa-se por forma escrita o arguido de que lhe será aplicada uma determinada sanção, antes mesmo de se proceder à acusação formal, e por que motivos essa sanção será aplicada, tendo em consideração as disposições legais violadas.

   Caso o arguido, sem mais, aceite o disposto na decisão em sede de processo sumaríssimo, essa mesma decisão passa a decisão condenatória definitiva, fazendo-se valer o princípio non bis in idem, pelo qual o arguido não pode vir depois a ser acusado e punido de novo pelo mesmos crime e pelos mesmos factos, de acordo também com o estipulado pelo nº 6 do referido artigo. Esta decisão, em processo sumaríssimo, implica que o arguido não possa dela recorrer. Aqui se consubstancia, por exemplo, uma situação em que a preferência pela tutela administrativa dos ilícitos ambientais coloca em causa as garantias de defesa dos particulares.

   Se, por outro lado, o arguido fizer uso das faculdades que lhe são atribuídas pelo nº 4, ainda do artigo 56º, recusando a decisão ou não se pronunciando sobre ela no tempo de 5 dias úteis desde a data da respectiva notificação, não pagando a coima ditada pela decisão, não acatando o comportamento devido ou requerendo alguma diligência complementar, deve o processo prosseguir a forma ordinária, nos termos dos artigos 43º e seguintes da Lei aqui em análise, ficando, deste modo, sem efeito a decisão adoptada no processo sumaríssimo.

   Perante a determinação de uma decisão sancionatória pela autoridade administrativa pode o infractor, no prazo de 20 dias desde o seu conhecimento, e por forma escrita, provocar a impugnação judicial dessa mesma decisão, nos termos do nº 1 do artigo 59º do Regime geral das contra-ordenações (decreto-lei nº 244/95, de 14 de Setembro), ex vi segunda parte do nº 1 do artigo 2º da Lei-Quadro das Contra-Ordenações Ambientais.

   O Tribunal competente, de acordo com o artigo 61º do Regime Geral das Contra-Ordenações, não poderia vir a aplicar uma sanção mais gravosa para o arguido do que aquela que ocorreria pela decisão da Autoridade Administrativa da qual se interpôs recurso, isto porque atender-se-ia aqui à ideia da proibição da reformatio in pejus, presente no artigo 72º-A deste Regime. Contudo, existem excepções na aplicação desta proibição: a coima poderia ser agravada se as condições económicas e financeiras do arguido tivessem melhorado sensivelmente, nos termos do nº 2 do artigo referido.

   No entanto esta solução é afastada explicitamente pela Lei-Quadro das Contra-Ordenações Ambientais que, de acordo com o estipulado pelo artigo 74º dessa mesma lei, cria um regime especial e refere que não é aplicável aos processos de contra-ordenação ambiental a proibição da reformatio in pejus. Assim sendo, uma decisão final pelo Tribunal que admitira a impugnação judicial da decisão da Autoridade Administrativa, e que condene o arguido, pode fazê-lo de forma mais severa.

   É de referir que, de acordo com o estipulado pelo artigo 53º da Lei-Quadro, para além do valor da coima, nos casos em que se tenha dado lugar a impugnação judicial da decisão da Autoridade Administrativa, e a qual o Tribunal tenha confirmado total ou parcialmente, pode ao arguido ser exigido um acréscimo relativo a juros, desde a data da decisão da Administração impugnada, à taxa máxima estabelecida na lei fiscal.

   Verificando-se a manutenção ou alteração da condenação, esta deve ser devidamente fundamentada pelo juiz, no respeito pelo preceituado no nº4 do artigo 64º do Regime Geral das Contra-Ordenações.

   O valor das coimas aplicadas em sede de contra-ordenações ambientais é canalizado, segundo o disposto pelo artigo 72º da Lei-Quadro referida, em 50% para o Fundo de Intervenção Ambiental – destinado a prevenir e reparar danos resultantes de actividades lesivas para o ambiente, nomeadamente nos casos em que os responsáveis não os possam ressarcir em tempo útil – em 25% para a autoridade que aplique a sanção, em 15% para a entidade autuante e em 10% para o Estado.

   A Lei-Quadro das Contra-Ordenações Ambientais estatui também um cadastro nacional que tem por objecto, nos termos dos números 1 e 2 do artigo 63º da Lei, o registo de sanções, principais (coimas) e acessórias, de medidas cautelares adoptadas durante o processo de contra-ordenação e de decisões judiciais tomadas relativamente à aplicação definitiva de sanções, bem como o registo de suspensões, prorrogação de suspensões e de revogações das decisões tomadas.

   A entidade responsável pelos registos descritos, organizados em ficheiro central informatizado, é a Inspecção-Geral do Ambiente e do Ordenamento do Território, de acordo com o estabelecido pelo artigo 64º da Lei-Quadro, cuja actividade neste domínio deve ser baseada pelo respeito dos princípios da legalidade, da veracidade e da segurança das informações recolhidas, como obriga o artigo 62º da mesma Lei.

   De acordo com o previsto ainda pelo artigo 64º, agora nºs 2 e 3, o acesso aos dados contidos no cadastro nacional é exclusivo aos sujeitos que constam desse registo, aos magistrados judiciais e do Ministério Público, quando em causa estejam necessidades de investigação criminal e de instrução de processos criminais, a entidades que, na prática processual penal, possam ter a seu cargo actos de inquérito ou de instrução e a entidades oficiais que a seu cargo tenham a prossecução de fins públicos.

   Para além desse cadastro nacional, a Lei-Quadro em análise dá também lugar a um registo individual, este a cabo da Autoridade Administrativa, nos termos do seu artigo 65º, cujo conteúdo se prende com a catalogação dos sujeitos responsáveis por infracções ambientais, indicando-se também as medidas cautelares e as sanções principais e acessórias aplicadas nos respectivos processos de contra-ordenação ambiental. Este registo individual, ao contrário do registo relativo ao cadastro nacional, permite um acesso público aos dados, quando em causa estejam a aplicação de sanções de tipo muito grave ou de reincidências envolvendo contra-ordenações do tipo grave. Não obstante esta publicitação de dados, o registo respectivo está sujeito aos termos e limites de protecção de dados pessoais, impostos pela Lei 67/98, de 26 de Outubro, no respeito pela consagração constitucional relativa à utilização de informática, nos termos do artigo 35º da C.R.P.


   É de salientar que os dados contidos no cadastro nacional são de registo temporário, uma vez que impõe o artigo 68º da Lei-Quadro das Contra-Ordenações Ambientais que devem ser eliminados, automática e irrevogavelmente, todos os dados com existência superior a 5 ou a 3 anos, nos casos de infracções graves e muito graves ou nos casos de infracções leves, respectivamente.


Bibliografia:

  • SILVA, Vasco Pereira da, Breve Nota sobre o Direito Sancionatório do Ambiente, in Direito Sancionatório das Autoridades Reguladoras, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, pp. 271-296;
  • GOMES, Carla Amado, As contraordenações ambientais no quadro da Lei nº50/2006, de 29 de Agosto: considerações gerais e observações tópicas, in Estudos de Homenagem a Miguel Galvão Telles, I, Coimbra, Almedina, 2012, pp. 457-478;
  • OLIVEIRA, Heloísa, Eficácia e Adequação na tutela sancionatória de bens ambientais, in Revista de Concorrência e Regulação, ano 2, nº5 (Janeiro-Março), 2011, pp. 205-238

*Este texto foi redigido sem a adopção do novo acordo ortográfico


Leila Monteiro
Aluna nº 20861


A responsabilidade civil para danos ambientais


"Quando a culpa é de todos, não é de ninguém"


O ambiente não pode ser objecto de direitos privados, é insusceptível de apropriação individual. De acordo com o art.202./2 Código Civil, é um “bem fora do comércio”. Segundo, segundo Menezes Leitão, esta ideia partia do pressuposto de que o ambiente era uma realidade ilimitada e renovável.

               Sabemos que hoje não é assim. Cada vez mais, vimos a assistir à consciencialização de que o ambiente é um bem limitado, finito, e o suporte à vida, como a conhecemos. Desta forma, temos assistido a uma mudança de paradigma – de uma visão utilitarista e de domínio do Homem sobre a Terra, passamos agora para uma consciência de que os recursos são finitos, que temos um dever se preservar o planeta para as gerações vindouras. Tal como os pais que amealham dinheiro para proporcionar aos filhos um futuro melhor, mais desafogado, esta deveria ser também a relação com o meio ambiente, de forma a deixarmos o melhor planeta aos nossos descendentes – é indubitável que vivemos ainda num mundo capitalista, em que é dada uma importância desmedida ao bem dinheiro - mas é este o caminho que estamos a percorrer, passo a passo.

               É neste contexto que aparece o instituto da responsabilidade civil, para matérias ambientais – a responsabilidade civil ambiental. Contudo, a adaptação deste regime coloca inúmeros problemas, por um lado, quanto à determinação dos pressupostos, por outro, relativamente à eficácia da indemnização, neste âmbito.

               Em primeiro lugar, pode colocar-se um problema de nexo de causalidade entre o facto, que ocorre num determinado espaço, e o dano, que pode manifestar-se numa área geográfica distinta, e revelar-se de diferentes formas. Por outro lado, este dano não tem, em concreto, um único responsável, nem sequer uma pluralidade determinada ou determinável, de responsáveis. O que acontece, é que existem inúmeros agentes poluidores, e é da sua actividade cumulada que resulta o dano. Ainda que este não seja o caso, apurar quem foi o responsável por tal dano é quase impossível, a acrescentar ainda a interferência que as alterações climatéricas podem representar neste contexto, e a concorrência com essa actividade poluente. Uma solução poderia passar pela “presunção de causalidade”, quando as empresas estiverem e acordo com as circunstâncias do caso concreto, em condições de verificar os danos provocados.[1] Parece-me que esta solução é perigosa e ineficaz em muitas situações – as empresas de certo sector podem encontrar bastantes dificuldades em ilidir tal presunção, é um ónus muito penoso.

               Também se colocam problemas à determinação dos titulares do direito de indemnização, que tal como acontece com os poluidores, pode ser quase impossível sua identificação. O Professor Menezes Leitão oferece o exemplo de uma maré negra – os titulares da indemnização serão os pescadores da zona? Ou os hotéis, que perderam clientes? Ou serão ainda os turistas, que vêm as suas expectativas de viagem frustradas? Em última análise, o reconhecimento das pessoas lesadas pode ser tão abrangente, que será insustentável esta ideia de indemnização por danos sofridos.

               Relativamente à indemnização, o direito civil entende-a apenas como ressarcimento dos danos, não impendido sequer a continuação da actividade danosa. Acontece que não são estas as necessidades do Direito do Ambiente, que passam pela lógica contrária, de cessação da actividade danosa, e de prevenção.[2] Outro problema suscitado pela maioria dos autores, prende-se com as repercussões desta indemnização nos preços dos produtos. Parece-me que o problema é mais aparente, sendo que o que se pretende com a responsabilidade civil pelos danos ambientais, é exactamente o ressarcimento desses mesmos danos, antes de qualquer culpa da empresa, pressuposto que, na responsabilidade ambiental, como adianta Luís de Menezes Leitão, pode mesmo ser dispensado.  Por isso, este não é um exacto problema da aplicação da responsabilidade civil ao direito ambiental. O principal objectivo não passa por penalizar a empresa ou os consumidores, mas em indemnizar os danos causados – outro problema nada fácil de determinar. No caso apresentado da maré negra, o dano era a poluição da àgua, mas havia muitos titulares prejudicados, havia muitos “danos” decorrentes do dano principal.

               Distinguem-se danos ambientais de danos ecológicos, entendendo-se que os primeiros são aqueles que violam bens jurídicos concretos, com poluidores tendencialmente determinados ou, pelo menos, determináveis. Por seu lado, os danos ecológicos são mais abstractos, em que há um dano do sistema ecológico, mas sem haver violação de direitos individuais.

               A lógica da responsabilidade civil adequa-se muito mais aos primeiros, aos danos ambientais. No fundo, são situações mais específicas, em que se conseguem preencher os pressupostos da responsabilidade civil – facto, ilicitude, dano e nexo de causalidade (no sentido de prescindir da culpa, ainda que esta possa ter lugar na maioria dos casos).

               Desta forma, aparece o Decreto-Lei 147/2008, a consagrar o regime da responsabilidade civil ambiental, distinguindo nos seus capítulos, dano ecológico e ambiental.

               Parece-me que um dos principais problemas em toda esta lógica de responsabilidade civil por dano ambiental se prende com a impossibilidade de reparação do dano. Como se ultrapassa o problema de determinar a reparação do dano de extinção de uma determinada espécie? Através de uma indemnização? A quem?

               Temos ainda um longo caminho a percorrer em matéria de consciencialização ambiental, e de medidas concretas para dar respostas a todos estes problemas. Parece-me que a responsabilidade civil ambiental consiste numa aplicação de certa forma imperfeita – porque os danos ambientais e a sua reparação têm de ser pensados noutra perspectiva – de solidariedade, cooperação, percepção das implicações das nossas actuações para o bem comum.

 
Inês Tamissa de Barros, aluna 20813
              

 




[1] Pereira da Silva, Vasco; Verde Cor de Direito; Almedina, 2ª Reimpressão, pags. 261 e 262.
[2] Menezes Leitão, Luís Manuel de; Actas do Colóquio, Responsabilidade Civil por dano ambiental, pag.24

O comércio de títulos de utilização de água: verdade ou consequência? *



Os mercados de emissões de títulos representam, no Direito do Ambiente, um instrumento alternativo ao princípio do poluidor pagador e assentam na ideia de que a utilização dos recursos naturais não pode continuar a padecer dos excessos que até agora lhe são tão característicos.
Com o estabelecimento de mercados como estes visa-se, numa primeira fase, criar títulos de utilização dos recursos naturais, cuja transacção é deixada ao sabor do natural funcionamento do próprio mercado, através de negociações entre os agentes económicos que nele participam ou querem participar.
O objectivo a implementar é, pois, que a utilização dos recursos naturais, tendo custos associados, seja suportada directamente pelos agentes económicos que deles beneficiam. Assim, consegue-se o efeito de incorporar o custo social das suas actividades relacionados com o desgaste dos recursos à sua disposição nos seus próprios custos privados, fazendo-os a repensar os seus comportamentos face a esta despesa, logrando-se, ao mesmo tempo,  a diminuição das actividades poluentes (ou, pelo menos, a minimização dos seus impactos).
A criação de mercados onde se transaccionam quotas, no que ao domínio do Ambiente respeita, remonta ao Protocolo de Quioto, onde se procedeu à criação de um comércio de emissões poluentes, que veio fixar o tecto máximo de poluição que cada agente económico pode emitir, mediante a aquisição de uma licença que tem associado o pagamento de um determinado preço[i].
Semelhante solução foi adoptada no domínio dos recursos hídricos, numa primeira fase, através da adopção de mecanismos de comando e controlo sobre a utilização dos recursos hídricos pelos particulares.
A natureza específica do bem água, caracterizada pela estreita conexão com direitos fundamentais, reclama todavia algumas considerações a ter presentes na consagração de um mercado onde se faça circular títulos de utilização.
À data da aprovação dos primeiros diplomas[ii], dizia-se que os mecanismos de comando e controlo não eram mais do que um modo de tutela pública sobre os recursos hídricos que integravam o domínio público[iii]. Assim, a administração das águas cabia sempre a entidades públicas que velavam pela utilização pública destes bens podendo apenas em determinadas situações e sob condições unilateralmente impostas, a sua execução ser confiada a particulares[iv].
No fundo, estes mecanismos de comando e controlo, traduziam-se na imposição de standards ambientais: visava-se, através da sua aplicação, lograr determinado patamar de referência ambiental, de racionalização dos recursos e de minimização dos impactos negativos decorrentes da sua utilização em massa e descuidada.
Actualmente, mantém-se a necessidade de se submeter a utilização e gestão dos recursos hídricos a um sistema de comando e controlo, nos termos do qual a utilização privativa de bens do domínio hídrico se encontra dependente da obtenção de um título público de utilização, que pode assumir a modalidade de licença ou de celebração de um contrato de concessão[v].
Mas, a ineficácia quanto à racionalização dos recursos hídricos que os sistemas de comando e controlo importavam,  justificou a procura de novas soluções. De entre elas, surgiu a Lei nº 58/2005 de 29 de Dezembro (Lei da Água) que  introduziu no nosso ordenamento jurídico a possibilidade de criação de mercados de águas, ao permitir que numa bacia hidrográfica, ou em parte dela, sejam transaccionados títulos de utilização de água[vi]/[vii].
Com a criação de um mercado como este no âmbito dos recursos hídricos, a Administração fixa um nível de utilização máximo que considere admissível para a exploração de um determinado recurso hídrico, repartindo-o entre os diversos operadores económicos dispostos a adquirir essa permissão de utilização. Numa segunda fase, e sempre sob o escrutínio da Administração, permite-se que os operadores possam negociar entre si a transacção dos seus títulos, evitando-se a cristalização no tempo da atribuição inicial e permitindo que os agentes económicos adaptem o volume de utilização às actividades que desenvolvem.
Diferentemente dos mecanismos de comando e controlo, que procuram estabelecer metas a alcançar na utilização dos recursos hídricos, que devem ser cumpridas indiferenciadamente por todos os utilizadores, os títulos transaccionáveis de quotas de utilização optam antes por prefixar o nível máximo permitido de utilização do recurso, ao mesmo tempo que permitem que os diferentes utilizadores que participam no mercado procedam, eles próprios, à gestão da utilização permitida, através da sua livre transacção de quotas entre si.
Assim, através deste sistema consegue-se uma distribuição equitativa dos custos associados à utilização dos recursos hídricos, pois que se permite aos agentes económicos que adaptem a utilização permitida pelas respectivas quotas às suas necessidades reais e efectivas, evitando-se desperdícios resultantes dessas utilizações.
Tem-se, pois, que os regimes em vigor até 2006[viii] procuravam assegurar a mera satisfação das necessidades de utilização dos recursos hídricos através da garantia de disponibilidade racional do recurso. Agora, depois da consagração de mercados de águas, vê-se que a principal vantagem que daí resulta consiste na possibilidade de auto-regulação da gestão do recursos hídricos pelo seu utilizador imediato.
O problema que se coloca na instituição de tais mercado é que, tendo estes a sua origem e razão de ser radicadas no princípio do valor económico da água, é difícil compatibilizá-lo com os parâmetros constitucionais, nomeadamente aqueles que determinam a sua gestão pública[ix]. É que, dotando-se das características essenciais dos bens do domínio público, também os recursos hídricos públicos se encontram subtraídos ao comércio jurídico privado, orientando-se pelos princípios da inalienabilidade, imprescritibilidade e impenhorabilidade. Ademais, é difícil conceber como é que os particulares possam gerir, eles próprios, um bem que, por natureza, é insusceptível de apropriação individual[x], podendo dirigir-se livremente ao mercado para adquirir ou alienar a sua permissão de utilização de um bem que pertence ao Estado[xi].
Portanto, o ponto em discussão é: o comércio de títulos de utilização de água traz uma verdade e, ao mesmo tempo, uma consequência. A verdade é que este instrumento permite a adaptação da utilização dos recursos hídricos às utilizações de cada operador económico, ao mesmo tempo que desonera a Administração da pesada tarefa de recolha de vasta informação sobre actividades que sejam ou que venham a ser objecto de regulação e dos critérios a que devem obedecer o seu exercício; a consequência deste mercado está, todavia, na (possível) usurpação da gestão pública de um bem que é público.
Apesar de os bens do domínio hídrico estarem subtraídos à titularidade dos particulares e, por isso, se diz que se encontram fora do comércio jurídico, tal indisponibilidade não obsta a que possam ser objecto de actos de disposição de natureza pública que lhes permitam uma utilização privativa desses bens, a qual se encontra justificada por ser a própria Administração que autoriza essa utilização quando estabelece o número de quotas a existir no mercado e ao distribui-las pelos agentes económicos interessados em participar nele. Note-se também que nos termos do art. 9.º/2 da Lei nº. Lei nº 54/2005 de 15 de Novembro,  a gestão de bens do domínio público hídrico por entidades de direito privado só pode ser desenvolvida ao abrigo de um título de utilização, emitido pela autoridade pública.
Acresce ainda o facto de que o que está verdadeiramente em causa nestes mercados não é uma negociação do bem água, até porque a exploração pelos particulares de recursos que pertençam ao Estado não pode implicar a transmissão da propriedade dos recursos explorados, mas antes o direito de utilização sobre esse bem, que tem associado a si o pagamento de um preço e a observância de uma série de obrigações.
O direito de utilização privativa de bens do domínio público, se bem que precário, permite também uma utilização em regime de exclusividade do bem, o que significa que o particular titular da licença de utilização pode opor a sua posição jurídica a actos de terceiros que perturbem o seu exercício. Esta utilização exclusiva do bem funciona como uma contrapartida pelo pagamento do preço associado à respectiva aquisição.
As dificuldades na passagem do crivo constitucional que o comércio de um bem que não é, por natureza, comercializável enfrenta têm procurado sido resolvidas pela doutrina através de meios que garantam um controlo administrativo apertado sobre as operações de transacção de quotas. A este propósito escreve TIAGO SOUZA D’ALTE[xii] que só se admite a livre transacção de quotas de utilização de recursos hídricos nas situações legalmente previstas e, para além dessas situações, não podem ter lugar outras, mesmo quando sejam objecto de um acto autorizativo da Administração, uma vez que não está ao alcance da Administração suprir o incumprimento de limites legalmente fixados. Note-se, que, para além deste controlo sobre os modos de transacção dos títulos, a Administração tem ainda a prorrogativa de obstar à produção dos efeitos que decorrem dessa transacção através de um controlo de mérito do caso concreto[xiii], podendo sindicar a transacção da quota através da reintegração na esfera do Estado da disponibilidade sobre o bem, o que evidencia a circunstância de na base desta sua actuação se encontrar um instrumento jurídico de direito público afecto à prossecução do princípio da indisponibilidade do interesse público.
Se é indiscutível que os bens do domínio público estão fora do comércio jurídico, não podendo ser objecto de direitos privados nem sequer de transmissão por instrumentos de direito privado[xiv], o direito de propriedade pública sobre o bem água confere à Administração os poderes de uso, fruição e defesa do domínio público, poderes estes que podem ser objecto de delegação em entidades privadas. O conteúdo do direito de propriedade pública sobre os bens, in casu, sobre a água, cifra-se num conjunto de faculdades autoritárias, manifestadas na prática de actos administrativos que permitem à Administração exercer uma melhor tutela sobre os bens integrados no seu domínio.
No uso desses poderes, conta-se a transferência da utilização do bem para operadores privados, transferência esta que não é acompanhada da transferência do domínio sobre o bem. Na verdade, essa transferência, tanto da Administração para os particulares prima facie, como dos próprios particulares entre si, só está autorizada mediante a verificação de uma série de exigências a estabelecer pela Administração[xv].
Portanto, visto ao pormenor, o funcionamento de um mercado como este não importa verdadeiramente a perda de um bem que, por excelência, se encontra no domínio público. Por outro lado, ao abrigo dos poderes de tutela e da (melhor) gestão dos bens do domínio público, existe uma não-verdade nas afirmações que tendem a obstar à gestão privada desses bens com base no argumento de que estes seriam bens subtraídos à comercialidade e aos actos que esta pressupõe, pois que, a implementação de quotas de utilização de bens, embora importe a prática de actos tipicamente regidos pelo direito privado[xvi], daí não advém a consequência de perda de propriedade do bem público. Estes actos, muito embora praticáveis, só o são sob o olhar escrutinador da Administração.
A segunda verdade sobre o mercado de quotas de utilização da água é que, face ao uso e fruição comum que o domínio público pressupõe[xvii], o exercício de poderes exclusivos sobre uma parcela pública determinada não colide com a fruição comum quanto aos mesmos, ou seja, tem-se que a sujeição do pagamento de um preço pela utilização do bem tem como fundamento o aproveitamento económico desse bem ao abrigo de um título jurídico-administrativo e não a utilização e fruição individuais desacompanhadas de qualquer contrapartida a favor da Administração, que as proporciona.
Respeitados os limites à sua transacção, tem-se que a consequência de um mercado em funcionamento segundo as regras apresentadas é a institucionalização de uma gestão pública partilhada sobre os recursos hídricos entre a Administração e os particulares.
Desta gestão partilhada, para além de resultar o planeamento e monitorização mais cuidados, consegue-se ainda imputar com mais facilidade a responsabilidade pela prática de um dano ao seu responsável pois que, pelo título se consegue identificar o seu portador e, consequentemente, o responsável pela prática de abusos no exercício dessa utilização[xviii]. Por outro lado ainda, um mercado como este contribui para o combate ao desperdício e utilização massificada e descuidada sobre estes bens.
Do exposto resulta a falta de verificação de consequências que possam obstar à institucionalização e funcionamento  dos mercados de águas no nosso ordenamento jurídico.

Ângela Cunha Carvalho

* O presente texto encontra-se, por opção da Autora, em desconformidade com o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa
[i] Sobre o comércio de emissões poluentes, remete-se para O(s) calcanhar(es) de Aquiles no Comércio de Emissões Poluentes, disponível em http://ambientesub2.blogspot.pt/search/label/%C3%82ngela%20Cunha%20Carvalho
[ii] Decreto n.º 8 de 1 de Dezembro de 1982 e Regulamento dos Serviços Hidráulicos, Diário do Governo, nº 290 de 22 de Dezembro de 1982.
[iii] Nos termos do art. 2.º/2 do Decreto-lei  nº 46/94 de 22 de Fevereiro, o domínio hídrico sujeito a mecanismos de comando e controlo abrangia o domínio público hídrico estabelecido no artigo 1.º do Decreto n.º 5787-IIII de 10 de Maio de 1919 e o domínio hídrico privado previsto nos art. 1385.º e seguintes do Código Civil.
[iv] O regulamento dos Serviços Hidráulicos de 1982 previa que a utilização das águas e dos demais bens do domínio hídrico ficassem sujeitos à emissão de actos autorizativos da Administração, a quem incumbia acautelar a correcta disponibilidade dos recursos e fiscalizar as actividades exercidas.
[v] Nos termos do preâmbulo do Decreto-Lei  nº 46/94 de 22 de Fevereiro, a licença caracteriza-se pela precariedade e pode ser atribuída por um prazo máximo de 10 anos ou de 35 anos, consoante as utilizações. Já o contrato de concessão, que pode atingir um prazo máximo de 75 anos, é, por regra, precedido de concurso público e caracteriza-se por ser um verdadeiro contrato administrativo com direitos e deveres específicos das partes contratantes.
[vi] Cfr. art.º 72.º Lei nº 58/2005 de 29 de Dezembro.
[vii] Na verdade, este instrumento não consubstanciou uma novidade absoluta no ordenamento jurídico. Já o Regulamento de Serviços Hidráulicos e o Decreto nº 5787-IIII de 19 de Maio, apesar de não atribuírem um específico valor económico à utilização da água, já previam o princípio do utilizador-pagador, fazendo impender sobre os beneficiários directos das utilizações o dever de pagamento de uma taxa anual destinada a remunerar os custos das medidas administrativas que permitiam essas utilizações. O pagamento das taxas variava consoante o volume de água utilizada e da potencialidade de efeitos nefastos que a actividade causava. Note-se que ainda não estava em causa considerar o recurso água como um bem económico mas apenas procurar resolver os problemas de externalidades negativas potencialmente gerados com a sua utilização.
[viii] Até à entrada em vigor da Lei nº 58/2005 de 31 de Dezembro que institui o mercado das águas
[ix] Atente-se no disposto do art. 81.º/1/a) CRP. Este disposto normativo determina que as águas constituem, ex vi constitutionis, objecto de um regime jurídico especial
[x] Atente-se no disposto do art. 202.º/2 do Código Civil: considera-se  fora do comércio todas as coisas que não podem ser objecto de direitos privados, tais como as que se encontram no domínio público e as que são, por natureza, insusceptíveis de apropriação individual.
[xi] O art. 2.º/2 da Lei nº 54/2005 de 15 de Novembro, que estabelece o regime jurídico da titularidade dos recursos hídricos é peremptório em fixar a titularidade dos recursos hídricos públicos no Estado, Regiões Autónomas, Municípios e Freguesias.
[xii] Tiago Souza D’Alte, Os novos mercados de águasO Comércio de Títulos no quadro da Lei da Água in Estudos em homenagem ao Professor Doutor Paulo de Pitta Cunha, Vol. II, Coimbra, 2010, pp. 957 e ss.
[xiii] Atente-se no facto de para a transacção ou cedência e utilização sobre os recursos hídricos terem de ser cumpridos os requisitos para a atribuição do título, que constam do art. 10.º e 27.º do Decreto-Lei nº 226-A/2007 de 31 de Maio. Está excluída a possibilidade de subtrair uma captação de água de uma bacia hidrográfica para outra sem consideração dos respectivos caudais ecológicos e do estado quantitativo e qualitativo das massas de águas.
[xiv] Cfr. art. 18.º, 19.º e 20.º do Decreto-Lei n.º 280/8007 de 7 de Agosto
[xv] A título exemplificativo, no conjunto de critérios orientadores da atribuição dos títulos de utilização destaca-se a  exigência de especificação meticulosa dos volumes de água que são objecto de transferência e ainda a necessidade de comunicação à Administração de Região Hidrográfica da ocorrência da transferência.
[xvi] Como sejam compra, venda, permuta e até mesmo especulação sobre as quotas.
[xvii] Atente-se no disposto no art. 58.º da Lei n.º 58/2005 de 29 de Dezembro, onde se prevê que os recursos hídricos do domínio público são de uso e fruição comum, não estando este uso e fruição sujeito a título de utilização.
[xviii] O legislador preocupou-se em estabelecer um conjunto de  deveres básicos aplicáveis a todos os títulos de utilização sobre os recursos hídricos. Neste sentido, o art. 57.º da Lei n.º58/2005 de 29 de Dezembro consagra os deveres básicos que todos os seus utilizadores estão adstritos pela atribuição do título.