Todos
conhecemos, ou pelo menos já ouvimos falar, do efeito de estufa. Numa breve definição,
o efeito de estufa é o processo que ocorre quando uma parte da radiação
infravermelha, emitida pela superfície terrestre, é absorvida por determinados
gases presentes na atmosfera, tendo como consequência a retenção do calor, que
deixa de ser libertado para o espaço.
A Revolução Industrial, iniciada por
volta de 1760 em Inglaterra, foi a grande alavanca para as alterações muito
significativas na nossa biosfera. Desde esse período até ao final do milénio
passado, a concentração de gases na atmosfera que contribuem para o efeito de
estufa quase duplicou, o que provocou o aumento da temperatura média da terra.
A possibilidade de consequências catastróficas no nosso planeta deixou de ser uma
quimera há medida que os prognósticos para o futuro se revelavam pouco animadores,
por isso em 1992 foi criada uma Convenção-Quadro que promovia as Convenções das
Partes (COP), onde os países se reuniam e debatiam o futuro e as alterações
atmosféricas. A Convenção das Partes realizada em Quioto, Japão, em 1997, é sem
dúvida a mais importante, pois criou o Protocolo de Quioto (que viria a entrar
em vigor em 2006). O principal objectivo do Protocolo de Quioto consiste na
redução das emissões de gases de efeito de estufa, prevendo sanções, para quem
ocorra em incumprimento. Pretendia-se que até ao período entre 2008 e 2012, os
países desenvolvidos reduzissem as suas emissões de gases com efeito de estufa
(doravante, GEE) em pelo menos 5% relativamente aos níveis de 1990. Esta era já
uma meta bastante ambiciosa, mas ainda assim, alguns países, como os que
compõem a União Europeia, comprometeram-se a reduzir as suas emissões de GEE
até 8%.
Em 2002, os Estados-Membros que compõem a União Europeia,
ratificaram o protocolo, sendo necessário o estabelecimento de medidas para o cumprimento,
que foram tomadas mesmo antes da ratificação, o que demonstra o compromisso da
União Europeia e dos seus Estados-Membros na promoção do ambiente e a sua
conscientização dos problemas e consequências ambientais que podem advir da
emissão de gases poluentes. Algumas destas medidas derivam do Livro Verde sobre
o Comércio de Emissões Poluentes, elaborado pela Comissão Europeia e
apresentado logo no ano 2000.
A Directiva 2003/87/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho,
de 13 de Outubro de 2003, posteriormente transposta para o ordenamento jurídico
nacional através do Decreto-Lei n.º 233/2004, de 14 de Dezembro, vinculou todos
os Estados-Membros a participarem, a partir de 1 de Janeiro de 2005, num mercado
europeu de emissões poluentes. Este mercado dividiu-se em três fases:
1ª Entre
2005 e 2007 - fase preparatória, de “aprendizagem prática”. Licenças atribuídas
a título gratuito;
2ª
Entre 2008 a 2012 - coincide com o período de avaliação do cumprimento das metas
estabelecidas em Quioto. Os limites máximos estabelecidos pela Comissão
Europeia para as emissões nacionais dos sectores incluídos no comércio de
licenças situa-se num nível médio inferior em cerca de 6,5 % comparado com as
emissões de 2005, de forma a garantir que cada um dos Estados-Membros cumpra
com os compromissos de Quioto que lhes correspondem;
3ª A
partir de 2013 as regras mudaram (remeto para a discussão infra).
O Comércio Europeu de Licenças de Emissão de Gases com Efeito
de Estufa (doravante, designado CELE) tem por objectivo ajudar os Estados-Membros
a cumprir com os compromissos de limitação ou redução das emissões de gases com
efeito de estufa de uma forma sustentável, configurando a pedra angular da
estratégia de luta contra as Alterações Climáticas por parte da União Europeia.
Trata-se do primeiro
regime internacional de comércio de licenças de emissão de CO2 em todo o mundo,
aplicando-se, desde 2008, não apenas aos 27 Estados-Membros, como também aos
restantes três membros do Espaço Económico Europeu (Noruega, Islândia e
Liechtenstein) e engloba quase 50% das emissões de CO2 na União Europeia, num
total de mais de 12 mil instalações.
O funcionamento do CELE assenta na fixação de um limite
máximo que não deve superar as emissões globais mas, dentro desse limite,
permite aos participantes neste comércio comprar e vender licenças de emissão
segundo as suas necessidades. Estas licenças de emissão são a “moeda de troca”
que sustenta todo o regime, permitindo ao seu titular emitir uma tonelada de
CO2.
Em relação a cada período do comércio de emissões, cada Estado-Membro
elabora Planos Nacionais de Atribuição de Licenças de Emissão (PNALE),
aprovados pela Comissão Europeia, onde se fixam os níveis totais de emissões no
comércio de licenças de emissão e o número de licenças de emissão atribuído a
cada instalação dentro do seu território (atribuição gratuita de licenças nas
duas primeiras fases).
No final de cada ano, as instalações têm a obrigação comunicar
as emissões e de entregar uma quantidade de licenças equivalente a estas. As
empresas cujas emissões se situam abaixo da quantidade atribuída, podem vender
as licenças que lhes sobram. As empresas com dificuldades para manter as suas
emissões dentro das licenças que lhe foram atribuídas, podem optar por tomar
medidas para reduzir as suas próprias emissões, comprar no mercado de licenças
a quantidade em falta ou optar por uma combinação de ambas as opções.
A terceira fase, iniciada em 2013, comporta um regime mais
alargado do CELE. Concluindo a transposição da Directiva nº 2009/29/CE, de 23
de Abril de 2009, o Decreto-Lei nº 38/2013 vem estabelecer novas regras. As
principais alterações ao regime consistem no alargamento do âmbito com a
introdução de novos gases (óxido nitroso e perfluorocarbonetos) e sectores
(produtores de alumínio e
amoníaco, armazenamento geológico de carbono); na substituição dos vários
limites máximos de licenças de emissão, correspondentes a cada Estado Membro,
por um único limite máximo à escala da EU; e na atribuição de licenças de
emissão efectuada por leilão (mantendo-se, em determinados casos a atribuição
gratuita, baseada em benchmarks).
Após esta curtíssima análise da
evolução do regime do CELE e tomada a consciência da sua importância ao nível
da política ambiental da união Europeia em termos de alterações climatéricas,
cumpre discutir a admissibilidade do próprio mercado, pois o que se
comercializa é uma autorização, um título jurídico que permite poluir.
Primeiramente cumpre saber que a
Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 66.º consagra o direito e
dever de preservação do Ambiente, todavia a mesma Constituição consagra a
liberdade de iniciativa económica privada (artigo 61.º/1 CRP), um dos valores subjacentes
à criação de um mercado de emissões poluentes.
Estarão estas duas normas
constitucionais em conflito? À primeira vista poderíamos ser tentados por uma
resposta afirmativa, na medida em que o mercado de emissões poluentes tem uma
intensa natureza económica subjacente, permitindo esta norma que os agentes
económicos desempenhem a sua actividade com autonomia e tendo em conta os seus
próprios interesses. Atento à norma constitucional, o Professor Tiago Antunes
tem o entendimento de que “o
conteúdo da liberdade de iniciativa económica privada, fora do respectivo
núcleo constitucional mínimo, é definido por lei”. Daqui podemos concluir que o
mercado de licenças de emissão de gases com efeito de estufa integra o âmbito
da liberdade de iniciativa económica privada, sendo portanto um mercado
constitucionalmente admissível. Assim, reconhece-se ao legislador uma margem de
discricionariedade para definir as regras a que deverá obedecer o mercado da
poluição, atendendo claro a outros valores constitucionalmente protegidos.
No reverso da moeda, o CELE é um mecanismo que impõe metas à
poluição e, por isso também tem fundamento na protecção e salvaguarda do meio
ambiente. Não consistindo o Direito ao ambiente num direito absoluto, deve compatibilizar-se
com outras consagrações constitucionais, desde que estas não sejam excessivas
ou desrazoavelmente lesivas do meio-ambiente.
Tendo tudo isto em consideração,
penso que não estamos perante um conflito de normas constitucionais. A poluição
atmosférica existe e vai continuar a existir, quer haja ou não mercado de
comercialização de licenças, por isso, dos dois males, que se escolha o menor
deles – o mercado de licenças de emissão de GEE, que permite fixar um limite e
impor medidas de monotorização, averiguação e comunicação da emissão de gases
poluentes por parte de cada instalação detentora de licença. O ambiente não é
descurado, pois apesar de se estar a vender e a comprar poluição, o
procedimento envolve-se de preocupações ambientais, a fim de contribuir para
atingir os níveis considerados cientificamente necessários para evitar as
alterações climatéricas.
A licença não configura a atribuição de um “cheque em branco”
ao operador, tendo em conta que vem acompanhada de diversas obrigações de
monotorização, comunicação, e verificação de informações relativas a emissões
(artigos 22.º e ss do DL n.º 38/2013, de 15 de Março).
Concluindo, com este mercado de
licenças de emissão de GEE é possível a obtenção de lucros através de
implementação de boas práticas ambientais, havendo uma responsabilidade
partilhada entre os agentes económicos. It’s
a win-win situation!
Bibliografia:
·
Tiago Antunes, O Comércio de Emissões Poluentes à luz da Constituição da
República Portuguesa, Lisboa AAFDL 2006
·
Vasco
Pereira da Silva, Verde Cor de Direito – Lições de Direito do Ambiente,
Almedina 2002
http://www.sendeco2.com
Sem comentários:
Enviar um comentário