26 de maio de 2014

Vende-se poluição!! Regime do Comércio de Licenças de emissão de gases com efeito de estufa (CELE)

            Todos conhecemos, ou pelo menos já ouvimos falar, do efeito de estufa. Numa breve definição, o efeito de estufa é o processo que ocorre quando uma parte da radiação infravermelha, emitida pela superfície terrestre, é absorvida por determinados gases presentes na atmosfera, tendo como consequência a retenção do calor, que deixa de ser libertado para o espaço.
       A Revolução Industrial, iniciada por volta de 1760 em Inglaterra, foi a grande alavanca para as alterações muito significativas na nossa biosfera. Desde esse período até ao final do milénio passado, a concentração de gases na atmosfera que contribuem para o efeito de estufa quase duplicou, o que provocou o aumento da temperatura média da terra. A possibilidade de consequências catastróficas no nosso planeta deixou de ser uma quimera há medida que os prognósticos para o futuro se revelavam pouco animadores, por isso em 1992 foi criada uma Convenção-Quadro que promovia as Convenções das Partes (COP), onde os países se reuniam e debatiam o futuro e as alterações atmosféricas. A Convenção das Partes realizada em Quioto, Japão, em 1997, é sem dúvida a mais importante, pois criou o Protocolo de Quioto (que viria a entrar em vigor em 2006). O principal objectivo do Protocolo de Quioto consiste na redução das emissões de gases de efeito de estufa, prevendo sanções, para quem ocorra em incumprimento. Pretendia-se que até ao período entre 2008 e 2012, os países desenvolvidos reduzissem as suas emissões de gases com efeito de estufa (doravante, GEE) em pelo menos 5% relativamente aos níveis de 1990. Esta era já uma meta bastante ambiciosa, mas ainda assim, alguns países, como os que compõem a União Europeia, comprometeram-se a reduzir as suas emissões de GEE até 8%.
Em 2002, os Estados-Membros que compõem a União Europeia, ratificaram o protocolo, sendo necessário o estabelecimento de medidas para o cumprimento, que foram tomadas mesmo antes da ratificação, o que demonstra o compromisso da União Europeia e dos seus Estados-Membros na promoção do ambiente e a sua conscientização dos problemas e consequências ambientais que podem advir da emissão de gases poluentes. Algumas destas medidas derivam do Livro Verde sobre o Comércio de Emissões Poluentes, elaborado pela Comissão Europeia e apresentado logo no ano 2000.
A Directiva 2003/87/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Outubro de 2003, posteriormente transposta para o ordenamento jurídico nacional através do Decreto-Lei n.º 233/2004, de 14 de Dezembro, vinculou todos os Estados-Membros a participarem, a partir de 1 de Janeiro de 2005, num mercado europeu de emissões poluentes. Este mercado dividiu-se em três fases:
1ª Entre 2005 e 2007 - fase preparatória, de “aprendizagem prática”. Licenças atribuídas a título gratuito;
2ª Entre 2008 a 2012 - coincide com o período de avaliação do cumprimento das metas estabelecidas em Quioto. Os limites máximos estabelecidos pela Comissão Europeia para as emissões nacionais dos sectores incluídos no comércio de licenças situa-se num nível médio inferior em cerca de 6,5 % comparado com as emissões de 2005, de forma a garantir que cada um dos Estados-Membros cumpra com os compromissos de Quioto que lhes correspondem;
3ª A partir de 2013 as regras mudaram (remeto para a discussão infra).
O Comércio Europeu de Licenças de Emissão de Gases com Efeito de Estufa (doravante, designado CELE) tem por objectivo ajudar os Estados-Membros a cumprir com os compromissos de limitação ou redução das emissões de gases com efeito de estufa de uma forma sustentável, configurando a pedra angular da estratégia de luta contra as Alterações Climáticas por parte da União Europeia.
 Trata-se do primeiro regime internacional de comércio de licenças de emissão de CO2 em todo o mundo, aplicando-se, desde 2008, não apenas aos 27 Estados-Membros, como também aos restantes três membros do Espaço Económico Europeu (Noruega, Islândia e Liechtenstein) e engloba quase 50% das emissões de CO2 na União Europeia, num total de mais de 12 mil instalações.
O funcionamento do CELE assenta na fixação de um limite máximo que não deve superar as emissões globais mas, dentro desse limite, permite aos participantes neste comércio comprar e vender licenças de emissão segundo as suas necessidades. Estas licenças de emissão são a “moeda de troca” que sustenta todo o regime, permitindo ao seu titular emitir uma tonelada de CO2.
Em relação a cada período do comércio de emissões, cada Estado-Membro elabora Planos Nacionais de Atribuição de Licenças de Emissão (PNALE), aprovados pela Comissão Europeia, onde se fixam os níveis totais de emissões no comércio de licenças de emissão e o número de licenças de emissão atribuído a cada instalação dentro do seu território (atribuição gratuita de licenças nas duas primeiras fases).
No final de cada ano, as instalações têm a obrigação comunicar as emissões e de entregar uma quantidade de licenças equivalente a estas. As empresas cujas emissões se situam abaixo da quantidade atribuída, podem vender as licenças que lhes sobram. As empresas com dificuldades para manter as suas emissões dentro das licenças que lhe foram atribuídas, podem optar por tomar medidas para reduzir as suas próprias emissões, comprar no mercado de licenças a quantidade em falta ou optar por uma combinação de ambas as opções.
A terceira fase, iniciada em 2013, comporta um regime mais alargado do CELE. Concluindo a transposição da Directiva nº 2009/29/CE, de 23 de Abril de 2009, o Decreto-Lei nº 38/2013 vem estabelecer novas regras. As principais alterações ao regime consistem no alargamento do âmbito com a introdução de novos gases (óxido nitroso e perfluorocarbonetos) e sectores (produtores de alumínio e amoníaco, armazenamento geológico de carbono); na substituição dos vários limites máximos de licenças de emissão, correspondentes a cada Estado Membro, por um único limite máximo à escala da EU; e na atribuição de licenças de emissão efectuada por leilão (mantendo-se, em determinados casos a atribuição gratuita, baseada em benchmarks).
                Após esta curtíssima análise da evolução do regime do CELE e tomada a consciência da sua importância ao nível da política ambiental da união Europeia em termos de alterações climatéricas, cumpre discutir a admissibilidade do próprio mercado, pois o que se comercializa é uma autorização, um título jurídico que permite poluir.
            Primeiramente cumpre saber que a Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 66.º consagra o direito e dever de preservação do Ambiente, todavia a mesma Constituição consagra a liberdade de iniciativa económica privada (artigo 61.º/1 CRP), um dos valores subjacentes à criação de um mercado de emissões poluentes.
            Estarão estas duas normas constitucionais em conflito? À primeira vista poderíamos ser tentados por uma resposta afirmativa, na medida em que o mercado de emissões poluentes tem uma intensa natureza económica subjacente, permitindo esta norma que os agentes económicos desempenhem a sua actividade com autonomia e tendo em conta os seus próprios interesses. Atento à norma constitucional, o Professor Tiago Antunes tem o entendimento de que “o conteúdo da liberdade de iniciativa económica privada, fora do respectivo núcleo constitucional mínimo, é definido por lei”. Daqui podemos concluir que o mercado de licenças de emissão de gases com efeito de estufa integra o âmbito da liberdade de iniciativa económica privada, sendo portanto um mercado constitucionalmente admissível. Assim, reconhece-se ao legislador uma margem de discricionariedade para definir as regras a que deverá obedecer o mercado da poluição, atendendo claro a outros valores constitucionalmente protegidos.
No reverso da moeda, o CELE é um mecanismo que impõe metas à poluição e, por isso também tem fundamento na protecção e salvaguarda do meio ambiente. Não consistindo o Direito ao ambiente num direito absoluto, deve compatibilizar-se com outras consagrações constitucionais, desde que estas não sejam excessivas ou desrazoavelmente lesivas do meio-ambiente.
            Tendo tudo isto em consideração, penso que não estamos perante um conflito de normas constitucionais. A poluição atmosférica existe e vai continuar a existir, quer haja ou não mercado de comercialização de licenças, por isso, dos dois males, que se escolha o menor deles – o mercado de licenças de emissão de GEE, que permite fixar um limite e impor medidas de monotorização, averiguação e comunicação da emissão de gases poluentes por parte de cada instalação detentora de licença. O ambiente não é descurado, pois apesar de se estar a vender e a comprar poluição, o procedimento envolve-se de preocupações ambientais, a fim de contribuir para atingir os níveis considerados cientificamente necessários para evitar as alterações climatéricas.
A licença não configura a atribuição de um “cheque em branco” ao operador, tendo em conta que vem acompanhada de diversas obrigações de monotorização, comunicação, e verificação de informações relativas a emissões (artigos 22.º e ss do DL n.º 38/2013, de 15 de Março).
            Concluindo, com este mercado de licenças de emissão de GEE é possível a obtenção de lucros através de implementação de boas práticas ambientais, havendo uma responsabilidade partilhada entre os agentes económicos. It’s a win-win situation!


Bibliografia:
·         Tiago Antunes, O Comércio de Emissões Poluentes à luz da Constituição da República Portuguesa, Lisboa AAFDL 2006
·         Vasco Pereira da Silva, Verde Cor de Direito – Lições de Direito do Ambiente, Almedina 2002
http://www.sendeco2.com

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